Por: István Mészarós.
Traduzido por: Nélio
Schneider.
Hoje, István
Mészáros completaria seus 87 anos. Ele nos deixou no dia 1º de
outubro deste ano, mas lega uma obra teórica e uma trajetória de vida da mais
alta importância para as próximas gerações de lutadores sociais. Em homenagem a
seu aniversário, o Blog da Boitempo disponibiliza aqui o último artigo que ele
escreveu para a revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda, cujo conselho
editorial ele também compunha. Publicado no segundo semestre de 2015, na edição
de número 25 da revista, o artigo discute o problema fundamental das
determinações substantivas, fundamental para pensar conceitos como “igualdade”
e “democracia” para além do capital. A tradução é de Nélio Schneider.
Boa leitura.
* * *
O problema das
determinações substantivas se refere a uma mudança fundamental de uma futura
sociedade, que, para se tornar historicamente sustentável, precisa ter a
igualdade substantiva como princípio norteador vital do seu metabolismo social.
Da mesma forma, nem é preciso dizer que alguns outros conceitos reguladores
(como o da democracia substantiva) não podem ser dissociados desse requisito,
no sentido de que todos eles precisam ser concebidos e implementados no
espírito da igualdade substantiva.
Para mim, é da
maior importância política, tanto na teoria quanto na prática, contrastar nossa
concepção do metabolismo social radicalmente diferente do futuro – sem o qual a
humanidade não sobreviverá – com as formas existentes. É por isso que uso a
expressão “substantivamente democrático” (e, é claro, “democracia substantiva”,
cujas características definidoras fundamentais a tornam indissociável da
“igualdade substantiva”) em contraste inclusive com a concepção de democracia,
que já foi genuinamente liberal e que, sob nenhuma condição, poderia ser
substantiva, mesmo que tenha conseguido ser mais ou menos substancial em um
sentido político limitado. Nesse sentido limitado, a política pode ser mais ou
menos “substancialmente democrática” sob um regime liberal, mas jamais poderá
ser substantivamente democrática. No caso do contraste feito aqui por mim, não
pode haver política “mais ou menos substantivamente democrática” ou “mais ou
menos substantivamente igual”. Ou ela é substantivamente democrática e
substantivamente igual ou não é. Em outras palavras, no último caso ela de modo
algum é substantiva. Em contraposição, sob certas condições históricas é
perfeitamente legítimo falar de relações políticas/sociais “mais ou menos
substancialmente democráticas” ou “mais ou menos substancialmente iguais”.
É nesse sentido
que usei a expressão “substantiva” em Para além do capital e que
continuo a usá-la no livro que estou escrevendo sobre o Estado. De fato, já
discuti esses problemas nos mesmos termos em meu livro sobre A teoria da
alienação em Marx, que comecei a escrever no ano de 1959 em Londres. Isso
porque a profunda preocupação que tenho com a substância crucial desse assunto
na verdade remonta bem explicitamente ao outono de 1951, a uma conversa que
tive com Lukács, na época em que o governo húngaro aumentou o preço dos itens
vitais alimentação e vestuário em 300% e os salários em somente 18 a 21%.
Na ocasião
discutimos essa medida na Associação Húngara de Escritores com Márton Horváth
(que atacou Lukács com veemência no “debate Lukács” dos anos 1949-1951), membro
do Politburo do Partido responsável pelos assuntos culturais/ideológicos.
Alguns dos meus amigos escritores e colegas recitaram a resposta que Horváth
queria ouvir, dizendo que o povo aprovou entusiasticamente a referida mudança.
Eu me mantive em silêncio total, mas ele se voltou para mim e perguntou: “E
você, camarada Mészáros, o que você ouviu?” Minha resposta foi esta: “Eu não
sei que parte do país meus amigos visitaram, mas onde eu vivo, que é um
distrito da classe trabalhadora, as pessoas estão praguejando e maldizendo o
Partido e o governo”.
Como lhe era
típico, ele respondeu: “Camarada Mészáros, espera-se que você os lidere, não
que siga atrás deles!” Isso mostrou que ele sabia muito bem o que o povo em
geral estava pensando; o que ele queria saber era como os escritores
propagandeariam a decisão do Partido. Dada a grande diferença entre a receita
dos trabalhadores e a dos principais escritores, os aumentos de preço dos
alimentos e do vestuário não afetaram significativamente os escritores, mas
atingiram duramente os trabalhadores. O aumento de 18 a 21% no salário dos
escritores proporcionou-lhes uma compensação razoável, ao passo que os
trabalhadores sofreram uma redução importante em sua necessidade principalmente
de suprimentos essenciais de alimentação e vestuário como resultado de seus
salários inadequados.
No dia seguinte,
contei a Lukács essa experiência desconcertante na Associação de Escritores e
ele riu comigo em um tom irônico e até sarcástico, sinalizando que desaprovava
o comportamento de Horváth. E então ele explicou para mim que uma solução mais
equitativa seria impossível, pois requereria somas elevadas com que a economia
não conseguiria arcar. Na ocasião, a única coisa que consegui dizer foi: “Eu
entendo, mas deve haver outra maneira”. Naquela altura da vida, eu não fazia a
menor ideia do que poderia e deveria ser essa “outra maneira” e de como se
poderia colocar em prática uma alternativa real às enormes desigualdades
existentes. Eu só sabia que “deve haver outra maneira”. Naturalmente eu também
sabia que as massas do povo estavam praguejando e maldizendo e que delas faziam
parte meus camaradas de classe e companheiros de infância.
Precisei de algumas
décadas de trabalho duro, em um período de fortes agitações e reviravoltas
históricas, para entender as complexas ramificações históricas e sociais da
diferença vital entre o que é chamado de “mais igualdade” (que significa
nenhuma igualdade real) e o requisito historicamente irreprimível de igualdade
substantiva.
As sociedades
democráticas liberais frequentemente afirmam sua pretensão de legitimidade
política insuperável proclamando sua intenção de instituir reformas políticas
que promovam a “democracia representativa” e “mais igualdade” (junto com
“taxação progressiva” etc.) e prometendo proteger a sociedade da “interferência
excessiva do Estado”. Na realidade, poucas dessas pretensões e intenções
resistem a um exame sério. Mas as sociedades do tipo soviéticas
pós-revolucionárias tampouco lograram viver à altura dos princípios que haviam
proclamado e acabaram retrocedendo ao mais desigual dos moldes capitalistas
(ver Gorbachev etc.). Ao derrubar temporariamente o Estado capitalista, elas
foram capazes de introduzir por certo tempo algumas reformas sociais limitadas,
mas não a mudança estrutural necessária que surgiu no horizonte histórico na
forma do desafio objetivo para a realização da igualdade substantiva.
Na verdade, a
questão da igualdade substantiva está ligada a um certo número de
assuntos vitais, que posso apenas mencionar sumariamente aqui. Ela diz respeito
ao capital como tal (isto é, ao sistema do capital em sua totalidade) e não
apenas ao capitalismo.
Igualmente, ela
diz respeito ao Estado do sistema do capital como tal (isto é, ao Estado do
capital em toda a sua variedade conhecida e factível), e não apenas ao Estado
capitalista. Em outras palavras, trata-se da redefinição e reprodução
permanente e historicamente viável do metabolismo social em sua totalidade, e
não apenas da derrubada do domínio político estabelecido.
As ilusões
associadas à noção de “democracia direta” etc. precisam ser avaliadas nessa
linha, dentro do quadro de referência do modo radicalmente redefinido de
reprodução societária. A razão disso é que as projeções irrealizáveis da
“democracia direta” permanecem irrealizáveis precisamente por estarem presas na
armadilha das limitações estruturais do domínio político vigente, enquanto o
desafio histórico inevitável é a transformação radical de todos os níveis do
metabolismo social de uma maneira não hierárquica. A política pode iniciar
mudanças sociometabólicas importantes e de fato fundamentais, mas não pode
constituir uma mudança por si só. Ela pode afetar de maneira significativa as
condições da reprodução material, mas ela própria é dependente – inclusive
quanto ao modo de articular suas demandas por uma mudança importante – da
natureza de dado ou visado quadro de referência reprodutivo de ordem material
(bem como, é claro, do seu correspondente cultural e ideológico).
Mudanças
políticas estratégicas são sempre formuladas nos termos de tal quadro
estrutural de ordem material – não importando que ele não esteja explicitado ou
até tenha sido cinicamente camuflado –, o que ocorreu sob as condições da
história passada, marcada pelos dados objetivos da determinação e da espoliação
classistas. E quando se visa, em nosso tempo, a uma tomada de decisão
globalmente política de cunho socialista para o futuro, esta precisa deixar
claro seus próprios termos práticos de referência em conformidade com o quadro
de referência reprodutivo de ordem material visado para a nova sociedade. O
“diretamente político” significa muito pouco nesse tocante, se é que significa
algo, ao passo que o materialmente substantivo faz toda a diferença (“sob o
teto de nossas casas”, como já dizia Babeuf).
Em função de sua
viabilidade histórica, esse tipo de redefinição de política e sociedade requer
que o capital seja erradicado totalmente do metabolismo social. Sem isso não
pode haver igualdade substantiva (ou democracia substantiva). Naturalmente esse
requisito acarreta também a erradicação total (ou o “fenecimento”) do Estado
como o conhecemos. O metabolismo reprodutivo do capital não pode ser erradicado
sem isso, pois, em seu âmago, o Estado é necessariamente hierárquico. Ele foi
historicamente constituído como o expropriador e usurpador da tomada de decisão
global do processo de reprodução societária. Além disso, o quadro de referência
reprodutivo de cunho material da ordem metabólica social do capital não teria
nem condições de funcionar sem os processos de tomada de decisão hierárquica
estruturalmente arraigados do Estado do capital correspondente.
Uma consideração
adicional precisa igualmente receber a devida ênfase nesse ponto: a capacidade
de restauração do capital. Pois, por sua natureza, o capital só pode ser
inexoravelmente onipotente, já que não é capaz de reconhecer qualquer limite.
Daí o absurdo completo da fantasia de Gorbachev (e de qualquer outra similar),
postulando uma “sociedade de mercado controlada”. (Como bem sabemos, essa
fantasia pode ter muitas variedades ilusórias, especialmente em condições de
severas crises econômicas.)
Tendo em vista
todas essas considerações, a única solução historicamente sustentável para o
futuro é a reconstituição radical do metabolismo social no espírito do
princípio orientador da igualdade substantiva. Isso só poderá ser visualizado
bem além da irrealizável terra do nunca e do lugar nenhum “substancialmente
mais equitativo” da esperança piedosa. De modo algum causa surpresa que, no
curso do desenvolvimento histórico conhecido, apregoado nos termos dos
postulados ilusórios da concepção democrático-liberal da “redistribuição mais equitativa
da riqueza” (em nome do “Estado de bem-estar” ou do que quer que seja), as
promessas feitas não deram em absolutamente nada. As relações sociais
resultantes não só não são “substancialmente mais equitativas”, como não são
nem sequer um pouquinho mais equitativas. Pelo contrário, temos testemunhado a
obscena concentração cada vez maior da riqueza. Tanto que até mesmo alguns
economistas políticos neoclássicos decentes, como Thomas Piketty, expuseram-na
em seus escritos, mesmo que não tenham apresentado qualquer solução.
Reorganizar a
sociedade, transferindo o poder da tomada de decisão aos produtores livremente
associados, é o único modo factível de introduzir o planejamento significativo.
Isso é condição absoluta, totalmente incompatível com a natureza inerente do
capital, devido à sua centrifugalidade estruturalmente insuperável. Essa
dimensão do metabolismo social fundamental de nossa ordem estabelecida – isto
é, sua incompatibilidade com o planejamento global, mas não com o
“planejamento” parcial/gerador de antagonismos das grandes corporações – é
agravada pelo requisito sistêmico do metabolismo reprodutivo de ordem material
do capital, que tende inexoravelmente para a globalização materialmente
invasiva, sem que haja qualquer processo correspondente e factível de tomada de
decisão global no plano político legitimador do Estado. Pois seria nada menos
que um absurdo completo se (ou quando) os apologistas da ordem metabólica
social estabelecida do capital visarem a um sistema global do seu gosto sem um
processo de planejamento globalmente viável e historicamente sustentável.
É claro que um
processo de planejamento racional não antagônico em um plano global e amplo é
inconcebível sem a correspondente modalidade apropriada de intercâmbio entre as
células constitutivas – que podem ser chamadas de “microcosmos” – da abrangente
ordem social. Nesse sentido, o planejamento globalmente viável só é factível
sobre a base de um processo de reprodução societário horizontalmente coordenado
(isto é, verdadeiramente não hierárquico). Essa é uma questão paradigmática de
reciprocidade social, no centro da qual encontramos o requisito histórico da
igualdade substantiva. Sem planejamento, o inevitável intercâmbio global em
nossa reprodução societária presente e futura não pode ser considerado
historicamente sustentável. Ao mesmo tempo, o planejamento em escala global é
inconcebível sem a remoção das desigualdades hierárquico-estruturais tão
evidentes no mundo atual.
Quanto a esse
aspecto, uma vez mais, defender o “substancial” (em termos de alguma mudança
postulada, mas irrealizável) não significa absolutamente nada, porque seu
quadro de referência orientador e a correspondente medida que delimita os
melhoramentos dos seus projetos permanecem a ordem hierárquica existente, estruturalmente
arraigada. O assim chamado “mais equitativo” pode até ser, em um sentido
parcial, “relativamente mais substancial” do que sua variedade anterior, mas
ele inevitavelmente falha – como fica amplamente comprovado no desenvolvimento
histórico real – no sentido vital de que não representa nenhum desafio real à
ordem social existente no que se refere a seus parâmetros estruturais
autossustentáveis e autojustificadores, muito bem ilustrados pela apregoada
pretensão liberal do “mais equitativo”. (Ver as projeções originais – feitas
por liberais como lorde Beveridge e outros – a respeito do “Estado de
bem-estar” e sua realização histórica patética e liquidação definitiva até
mesmo nos poucos países capitalistas privilegiados.) Para sair dessa ordem social
estruturalmente desigual necessitamos de uma igualdade substantiva
qualitativamente diferente como princípio orientador e também da medida
apropriada de sua realização.
Esse também é o
único modo pelo qual a questão da transição para uma transformação socialista
da ordem metabólica social pode adquirir um significado apropriado: provendo os
critérios e a medida pelos quais poderão ser confirmadas as realizações
particulares rumo a uma sociedade substantivamente equitativa em sua
totalidade.
Por razões historicamente
compreensíveis, os movimentos políticos particulares que tentam afirmar suas
políticas certamente têm de prometer resultados tangíveis aos seus potenciais
seguidores. Esse é um problema muito difícil porque se tende a impor as
demandas colocadas pelas expectativas de curto prazo dos movimentos políticos,
em vez de se operar com a perspectiva historicamente sustentável de longo
prazo. Na verdade, porém, a transformação estrategicamente viável não é
factível sem a plena observância dos requisitos objetivos e subjetivos de longo
prazo. Infelizmente, contudo, a distinção entre “estratégia e tática”
frequentemente é usada para justificar a negligência em relação ao longo prazo,
quando se diz que “isso e aquilo” foram pensados “apenas taticamente”, embora
se encontrassem em contradição direta ao longo prazo estrategicamente viável.
O fato é que a
adoção de tais táticas pode provocar um descarrilamento sério da necessária
estratégia de longo prazo. Além disso, não haverá estratégia viável sem um
quadro de referência orientador apropriado às determinações globais das
tendências e potencialidades de longo prazo historicamente determináveis. É por
isso que nossa preocupação com o contraste entre substantivo e substancial é de
importância vital. Quando se visualiza uma transformação socialista
historicamente sustentável não se pode abandonar o princípio orientador radical
e a medida da igualdade substantiva, os quais podem permitir a constante
avaliação do período de transição para uma ordem metabólica social
fundamentalmente diferente.
Tudo isso é
perfeitamente compatível com as opiniões de Marx. Porém, em nosso período
histórico, o quadro de referência conceitual deve ser articulado no sentido
anteriormente exposto, refletindo as condições agravadas e cada vez piores da
irreversível fase descendente de desenvolvimento do capital, com sua tendência
para a destruição global da humanidade, que só poderá ser evitada através da
constituição de uma ordem sociometabólica substantivamente equitativa. Nossa
crítica ao Estado deve ser concebida a partir dessa perspectiva.
***
István Mészáros é
autor de extensa obra, ganhador de prêmios como o Attila József, em 1951, o
Deutscher Memorial Prize, em 1970, e o Premio Libertador al Pensamiento
Crítico, em 2008, István Mészáros se afirma como um dos mais importantes
pensadores da atualidade. Nasceu no ano de 1930, em Budapeste, Hungria, onde se
graduou em filosofia e tornou-se discípulo de György Lukács no Instituto de
Estética. Deixou o Leste Europeu após o levante de outubro de 1956 e exilou-se
na Itália. Ministrou aulas em diversas universidades, na Europa e na América
Latina e recebeu o título de Professor Emérito de Filosofia pela Universidade
de Sussex em 1991. Entre seus livros, destacam-se Para além do
capital – rumo a uma teoria da transição (2002), O desafio
e o fardo do tempo histórico (2007) e A crise estrutural do capital (2009), A
obra de Sartre, e O conceito de dialética em Lukács todos publicados
pela Boitempo.
Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2017/12/19/meszaros-igualdade-substantiva-e-democracia-substantiva/
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