Por: Ricardo Rojas / Reuters
Quando um país passa fome, desemprego e
medo, em quem vota? Outubro marca o início de um ciclo eleitoral, um ano
decisivo à América Latina, em que presidentes e partidos políticos serão
testados em um contexto inédito. A região enfrenta a ameaça do coronavírus, mas
também sofre o golpe econômico trazido pela covid-19. O impacto que terá a
crise econômica e sanitária leva a América Latina a um cenário incerto. Os
especialistas concordam que neste lado do mundo a pandemia abrirá o caminho a
novas lideranças.
Quarenta e cinco milhões de
pessoas estão em risco de pobreza como consequência da pior crise econômica
vivenciada pela América Latina em 100 anos, derivada de uma pandemia que
já custou mais de um milhão de vidas. Antes da covid-19, a região já era a
mais desigual do mundo. O vírus não só voltou a colocar essas desigualdades em
primeiro plano; organizações multilaterais e especialistas concordam que a
situação irá piorar. Além disso, a riqueza, medida como o Produto Interno Bruto
(PIB), cairá 9,4% neste ano, de acordo com o Fundo Monetário Internacional,
e para 2021 o crescimento será de somente 3,7%. De fato, todos os prognósticos
econômicos são preliminares e não seria estranho que piorassem. A cada dia que
passa em que trabalhadores permanecem em casa para evitar o contágio, é um dia
de salário e sustento perdido.
Em 18 de outubro, a Bolívia
será o primeiro país a votar ―em primeiro turno― por um novo presidente e
um novo Congresso, em eleições já duas vezes adiadas pela contingência do
coronavírus. Uma semana depois, o Chile realizará um plebiscito nacional em
que a população decidirá sobre uma nova Constituição. Em 15 de novembro, os
brasileiros vão às urnas para o primeiro turno das eleições municipais. O
Brasil, assim como Chile, Equador, Peru e Honduras, realizará eleições para
presidente em 2022. Também é esperado o mesmo na Nicarágua, onde o regime de
Daniel Ortega parece eterno. Ainda ocorrerão eleições de meio de mandato no
México, Argentina e El Salvador, onde o poder central será colocados à prova em
pleitos parlamentares e locais. A incerteza do que acontecerá nas eleições
legislativas da Venezuela, previstas para 6 de dezembro, nas quais a maior
parte da oposição se recusa a participar argumentando que não existem as
garantias necessárias, soma ainda mais insegurança ao cenário nacional.
Os partidos políticos já
estavam enfraquecidos antes da chegada do coronavírus por escândalos de
corrupção, processos judiciais e até a prisão de ex-mandatários. O
crescimento econômico, com algumas exceções, havia parado e os governos já
tinham menos dinheiro em seus cofres. Uma onda de descontentamento social já
havia se apoderado de alguns países e movimentos sociais, como o feminismo,
ganharam força diante da ameaça da violência.
“Eu vaticino ciclos mais curtos
no poder, com mais alternância, com mais caras novas, em grande medida
provocado pelo contexto socioeconômico. Ao contrário dos primeiros 12 a 14 anos
dessa década, quando ainda existia o boom das matérias-primas e os Governos
tinham muito dinheiro, os atuais estão administrando uma crise”, afirma Daniel
Zovatto, diretor regional para a América Latina e Caribe da IDEA
Internacional, organização independente que estuda a democracia. Na
maioria dos casos, diz Zovatto, os atuais presidentes estão em minoria nos
congressos, o que torna a governabilidade mais complexa. “Há mais polarização e
há mais fragmentação política, o que torna mais difícil articular consensos,
que é o que a região precisa para avançar em reformas profundas. Essa é a
reconfiguração política que temos na América Latina à luz do que vemos agora”.
O eleitorado responderá com seu
voto a algumas perguntas fundamentais, afirma Cynthia Arnson, diretora do
programa da América Latina do Wilson Center, uma organização independente
que estuda políticas públicas. Primeiro, quão limpo foi o Governo durante a
crise? “Um tema muito importante tem a ver com as percepções de corrupção na
resposta à pandemia e houve exemplos vergonhosos em praticamente todos os
países da região”, diz Arnson. No México, Equador, Bolívia e Brasil, diversas
investigações revelaram um abuso por parte das autoridades para enriquecer
aliados com o gasto de emergência em saúde. “Já vimos, a partir do episódio da
Lava Jato, a forma em que a raiva popular contra a corrupção desempenha um
papel importante nas eleições,” acrescenta a especialista.
A segunda pergunta fundamental,
afirma Arnson, é o que propõem os candidatos para abordar as disparidades
econômicas? “O coronavírus expôs, talvez como nunca, o que havia sido feito no
passado, as profundas desigualdades econômicas na região e, portanto,
isso abre as portas para que a desigualdade se transforme em um estandarte
eleitoral”, diz a especialista, “permite que a condenação à desigualdade e a
promessa de fazer algo a respeito caia em chamamentos populistas, seja de
esquerda e de direita, para fazer algo contra as elites que se beneficiaram”.
Um relatório recente do Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID) aponta a desigualdade como um
catalisador da compra de votos. O BID cita uma pesquisa de 2017 que sugere que
a compra de votos é “um fenômeno predominante em muitas democracias da América
Latina” e acrescenta: “A compra de votos como estratégia eleitoral é mais comum
em países onde as promessas das campanhas têm credibilidade baixa, como no caso
das democracias da América Latina onde os partidos políticos são frágeis”. Dado
que os eleitores mais pobres são mais suscetíveis à compra de votos, diz o BID,
esse tipo de distribuição de recursos pode se transformar em um substituto do
estado de bem-estar.
Zovatto concorda com o
diagnóstico de Arnson e alerta que pode até surgir um maior populismo
autoritário. “Diante dessa situação de muita irritação, de muita fragilidade
econômica, talvez as pessoas digam: 'Eu quero um salvador, não quero um
presidente. Não quero um Churchill que me diga sangue, suor e lágrimas. O que
quero é alguém que me diga venha comigo que eu te protejo e cuido de tudo”, diz
Zovatto.
Os países costumam, geralmente,
votar pelo fim da continuidade e a favor da alternância quando a economia vai
mal, em uma espécie de voto “castigo”, opina Diego Von Vacano, professor de
Ciências Políticas e Estudos Latino-americanos da Universidade Texas
A&M. Mas esses são tempos sem precedentes e há muito que ainda não se sabe
sobre como será e a velocidade da retomada econômica. O Fundo Monetário
Internacional estima que o PIB regional crescerá de maneira moderada em 2021,
em 3,7%. “Essas eleições serão bem diferentes”, diz o acadêmico, “e minha
opinião é talvez um pouco controversa, mas eu diria que, mesmo sendo verdade
que a situação do coronavírus é extremamente crítica, é ainda mais importante a
da democracia. Então, é preciso ir votar”.
No Chile e na Bolívia as eleições
já foram postergadas duas vezes pela contingência. A República Dominicana é,
até agora, o único país que teve eleições durante a pandemia, em um processo em
que o candidato de oposição, Luis Abinader, ganhou a eleição com 52,5% dos
votos, após se infectar pelo vírus três semanas antes da votação. Para Von
Vacano, um risco é que, por um lado, as eleições sigam sendo adiadas e, por
outro, que os Governos eclipsem os resultados da eleição fazendo uso da força e
justificando-o como necessária para manter a distância saudável e a ordem. “No
caso da Bolívia, há um grande temor de que exista fraude porque o Governo está
pedindo que o Exército e a polícia, por exemplo, participem e colaborem com o
Tribunal Eleitoral com o pretexto de garantir as eleições”, diz Von Vacano.
“Isso não ocorria antes e pode ser um problema, pode acontecer o contrário,
pode afetar o resultado, pode eclipsar. Acho que isso também pode se repetir em
outros países com o pretexto da segurança das eleições de envolver o Exército e
fazê-las de alguma maneira que não sejam tão transparentes”, disse o
especialista.
Como no restante do mundo, a
América Latina sofre o risco do crescimento da polarização e a
fragmentação, diz Zovatto. Essas eleições podem trazer mais populismo se não existirem
boas opções e se as demandas das populações não se direcionarem adequadamente
pela via institucional. “Pode acontecer que ocorra um ressurgimento de todas as
ondas de protestos sociais marcados pela violência porque já vimos que a
pandemia atingiu a região em um momento de marcada fragilidade”, acrescenta
Zovatto.
Nos últimos dois anos, do Chile
e Argentina à Colômbia e México foram vistas grandes mobilizações nacionais e
protestos contra a desigualdade, a corrupção e a pobreza. Além disso, os
protestos feministas contra a discriminação e a violência de gênero aumentaram
em toda a região desde 2017. Ainda que o confinamento pelo vírus os tenha
colocado em pausa temporariamente, na Argentina, Colômbia e no México o
descontentamento voltou às ruas.
“O fato de que se terá mais
alternância ―de que pode existir um voto de castigo aos partidos no poder, de
que poucos mandatários têm a opção de reeleição, de que surgirão novos rostos e
de que o feminismo vem ganhando importância ―, não irá abrir a possibilidade de
irrupção de novas candidatas e líderes mulheres, que, por sua vez, podem
aproveitar o que a pandemia demonstrou, que em 7 dos 10 países onde a
pandemia teve melhor gestão são mulheres no comando?”, se pergunta Zovatto.
“Essa é uma pergunta importante nas próximas eleições. A questão de uma
liderança feminina que tenha características diferentes, em um momento em que é
necessária uma liderança diferente”.
Fonte: https://brasil.elpais.com/internacional/2020-10-05/america-latina-encara-processo-eleitoral-inedito-com-mais-de-dez-eleicoes-marcadas-pela-pandemia.html
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