Por Silvio Luiz de Almeida.
Há dois fatores
sistematicamente negligenciados pelas analistas da atual crise econômica. O
primeiro é o caráter estrutural e sistêmico da crise. Em geral, são destacados
como motivos determinantes da crise os erros e ou excessos cometidos pelos
agentes de mercado ou pelos governantes da vez. O caminho intelectual dessa
explicação é o individualismo, o que reduz a crise a um problema moral e/ou jurídico.
Desse modo, a avaliação da crise e suas graves consequências sociais – fome,
desemprego, violência, encarceramento, mortes – convertem-se em libelos pela
reforma dos sistemas jurídicos, pela imposição de mecanismos contra a corrupção
ou ainda, por campanhas pela conscientização acerca dos males provocados pela
“ganância” ou pela sede de lucro. Enfim, tanto causas como efeitos recaem
apenas sobre os sujeitos e nunca são questionadas as estruturas sociais que
permitem a repetição dos comportamentos e das relações que desencadeiam as
crises.
O segundo fator
esquecido pelos estudiosos da crise – intimamente ligado ao primeiro – é a
especificidade que a crise assume no tocante aos grupos sociais que a
sociologia denomina de minorias. Minorias caracterizam-se pelos processos de
discriminação direta ou indireta a que são submetidas pessoas socialmente
identificadas como pertencentes a determinados grupos sociais (negros, judeus,
mulheres, pessoas LGBT etc.). A discriminação sistemática, processual e histórica
cria uma estratificação social que se reverte em inúmeras desvantagens
políticas e econômicas aos grupos minoritários, vivenciadas na forma de
pobreza, salários mais baixos, menor acesso aos sistemas de saúde e educação,
maiores chances de encarceramento e morte.
São duas as
conclusões até este momento: 1) a identificação de um grupo social minoritário
deve levar em conta as peculiaridades de cada formação social, vez que a
dinâmica do processo discriminatório vincula-se à lógica da econômica e da
política; 2) a discriminação só se torna sistêmica se forem reproduzidas as
condições sócio-políticas que naturalizem a desigualdade de tratamento
oferecido a indivíduos pertencentes a grupos minoritários. Por isso, em face da
estrutura política e econômica da sociedade contemporânea, formas de
discriminação como o racismo só se estabelecem se houver a participação do
Estado, que pode atuar diretamente na classificação de pessoas e nos processos
discriminatórios (escravidão, apartheid e nazismo) ou indiretamente, quando há
omissão diante da discriminação, permitindo-se que preconceitos historicamente
arraigados contra negros, mulheres e gays se transformem em critérios “ocultos”
ou regras “não inscritas” que operam no funcionamento das instituições, na
distribuição econômica (emprego e renda, por exemplo) e na ocupação de espaços
de poder e decisão.
Crise como crise
do capitalismo
Em primeiro
lugar, o que chamamos de capitalismo é uma relação social, em que detentores de
dinheiro e dos meios de produção (máquinas, terra, escritórios, ferramentas,
computadores etc.) e trabalhadores assalariados relacionam-se com o fim de
produzir mercadorias. O objetivo fundamental da produção de mercadorias é gerar
mais dinheiro do que o investido na produção, e não satisfazer necessidades
humanas. Portanto, além de cobrir os custos da produção, a venda de mercadorias
deve gerar um excedente que será revertido para a aquisição de mais capital, ou
seja, na ampliação dos fatores de produção. O capitalismo se define como um
processo socialmente orientado para o acúmulo de capital. Mas ainda que a base
da relação mantenha-se a mesma, a produção capitalista será organizada das mais
diferentes maneiras, e isso irá variar de acordo com o local, com o
desenvolvimento tecnológico, com as condições dos trabalhadores, com as
condições políticas etc. Em suma: as formas de acumulação podem variar a fim de
garantir a expansão do capital, o aumento da produtividade e a obtenção do
lucro.
Uma sociedade de
troca mercantil não é um dado natural, mas uma construção histórica. O mercado
ou sociedade civil não seria possível sem instituições, direito e política.
Como nos adverte Robert Boyer “as instituições básicas de uma economia
mercantil pressupõem atores e estratégias para além dos atores e estratégias meramente
econômicos”1. Para demonstrar como o mercado é de fato uma construção social,
Boyer conta-nos como a intervenção estatal direta ou indireta foi
imprescindível para: 1) tornar possível a concorrência, estipulando regras e
limites à atuação das empresas. A concorrência que muitos consideram como da
“natureza” do capitalismo só é possível pela mediação entre as esferas
pública e privada; 2) liberar as forças de concorrência do trabalho, o que
historicamente implicou na regulação das relações salariais, ora pelo direito
privado (privilegiando regras pactuadas pela negociação entre capital e
trabalho), ora ao denominado direito social (com imposição de certos limites ao
contrato). Nesse sentido, a intervenção estatal “é mais evidente ainda quando
referente à cobertura social: as lutas dos assalariados pelo reconhecimento dos
acidentes de trabalho, dos direitos à aposentadoria e à saúde resultaram em
casos de avanço em matéria de direitos sociais – avanços que dizem respeito
tanto à natureza da cidadania quanto ao modo de regulação”2. A relação
salarial, independentemente de quais mecanismos jurídico-políticos atuam na
fixação de seus parâmetros, é decorrente de uma mediação estatal.
É nesse sentido
que além das condições objetivas – e aqui referimo-nos às possibilidades
materiais para o desenvolvimento das relações sociais capitalistas – o
capitalismo necessita de condições subjetivas. Com efeito, os indivíduos
precisam ser formados, subjetivamente constituídos, para reproduzir
em seus atos concretos as relações sociais, cuja forma básica é a troca
mercantil. Nisso, resulta o fato de que um indivíduo precisa tornar-se um
trabalhador ou um capitalista, ou seja, precisa “naturalizar” a separação entre
“Estado” e “sociedade civil”, sua condição social e seu pertencimento a
determinada classe ou grupo. Esse processo, muitas vezes, passa pela
incorporação de preconceitos e discriminação que serão “atualizadas” para
funcionar como modos de subjetivação no interior do capitalismo. Este processo
não é “espontâneo”; os sistemas de educação e meios de comunicação de massa são
aparelhos funcionam justamente produzindo subjetividades culturalmente
adaptadas em seu interior. Não é por outro motivo que parte da sociedade
entende como um mero aspecto “cultural” o fato de negros e mulheres receberem
os piores salários e trabalharem mais horas mesmo que isso contrarie
disposições legais3.
Estado e crise
Mas o que é o
Estado? Como define Joachim Hirsch4, o Estado é a “condensação material de uma
relação social de força”. Está longe de ser, portanto, o resultado de um
contrato social, a corporificação da vontade popular democrática, o ápice da
racionalidade ou o instrumento de opressão da classe dominante. Essas
definições que passeiam entre o idealismo e a simplificação abstrata, não
revelam a materialidade do Estado, enquanto um complexo de relações sociais
indissociável do movimento da economia.
“Ele é bem mais
uma relação social entre indivíduos, grupos e classes, a ‘condensação material
de uma relação social de força’. Material, porque essa relação assume uma forma
marcada por mecanismos burocráticos e políticos próprios no sistema das
instituições, organizações e aparelhos políticos. A aparelhagem do Estado tem
uma consistência e uma estabilidade e por isso é mais do que a expressão direta
de uma relação social de força. Mudanças nas relações de força sempre produzem
efeitos no interior do Estado, mas ao mesmo tempo a estrutura existente do
aparelho estatal reage sobre eles. O Estado expressa em sua concreta estrutura
organizativa relações sociais de força, mas também simultaneamente as forma e
as estabiliza” 5.
O Estado é a
forma política do capitalismo, e não um mero instrumento dos capitalistas. Pode-se
dizer que o Estado é de classe, mas não de uma classe, salvo em condições
excepcionais e de profunda anormalidade. Em uma sociedade dividida em classes e
grupos sociais, o Estado aparece como a unidade possível, em uma vinculação que
se vale de mecanismos repressivos e material-ideológicos6. A manutenção desse
modo de vida conflituoso depende da internalização, pelos indivíduos, das
condições de funcionamento da sociedade capitalista como parte da “cultura”. A
ideologia – e quando esta não for suficiente, a violência física – fornece o
remendo para uma sociedade estruturalmente marcada por contradições, conflitos
e antagonismos insuperáveis. Esses fatores explicam a importância da construção
de um discurso ideológico calcado na meritocracia, no sucesso individual e no
racismo a fim de “naturalizar” a desigualdade.
Ressalte-se que
alterações das relações de força e dos conflitos sociais pressupõem a
capacidade do Estado de manter “as estruturas socioeconômicas fundamentais” e a
adaptação do Estado às transformações sociais sem comprometer sua unidade
relativa e sua capacidade de garantir a estabilidade política e econômica7.
O conflito
social entre capital e trabalho assalariado não é único conflito existente na
sociedade capitalista. Há outros conflitos que se articulam com as relações de
dominação e exploração, que não se originam nas relações de classe e tampouco
“desapareceriam com ela”8: são conflitos raciais, sexuais, religiosos,
culturais e regionais que remontam a períodos anteriores ao capitalismo, mas
que nele tomam uma forma especificamente capitalista. Portanto, entender a
dinâmica dos conflitos raciais e sexuais é absolutamente essencial à
compreensão do capitalismo, visto que a dominação de classe se realiza nas mais
variadas formas de opressão racial e sexual. A relação entre Estado e sociedade
não se resume à troca e produção de mercadorias; as relações de opressão e de
exploração sexuais e raciais são importantes na definição do modo de
intervenção do Estado e na organização dos aspectos gerais da sociedade9.
“O racismo, tal
como a moderna construção das relações de gênero, é um meio da divisão social e
da desorganização das classes dominadas, seja no interior como no exterior das
fronteiras estatais. Através desses mecanismos de opressão e de dominação
funda-se o povo enquanto nação. Como as fronteiras estatais são sempre
permeáveis e a unidade ‘étnica’ deve permanecer basicamente indefinida e
instável, o racismo adquire sua contínua eficácia e dinâmica”10.
Há, portanto,
um nexo estrutural entre as relações de classe e a constituição
social de grupos raciais e sexuais que não pode ser ignorado11. Como afirmei no
artigo “Estado, direito e análise materialista do racismo”, “as classes quando
materialmente consideradas também são compostas de mulheres, pessoas negras,
indígenas, gays, imigrantes, pessoas com deficiência, que não podem ser
definidas tão somente pelo fato de não serem proprietários dos meios de
produção. “Para entender as classes em seu sentido material, portanto, é
preciso, antes de tudo, dirigir o olhar para a situação real das minorias”12.
O que é a crise
afinal?
A crise é um
elemento estrutural, inscrito na lógica da sociabilidade capitalista13. Deste
modo, em sendo a crise parte do capitalismo, defini-la é, de certo modo,
determinar o funcionamento não apenas da economia, mas das instituições
políticas que devem manter a estabilidade14. O processo de produção capitalista
depende de uma expansão permanente da produção e de uma acumulação incessante
de capital. Entretanto, a acumulação incessante de capital e a necessidade de
aumento da produção encontram limites históricos que se chocam com as
características conflituosas da sociedade. A crise se dá justamente quando o
processo econômico capitalista não encontra compatibilidade com as instituições
e as normas que deveriam manter a instabilidade. As crises revelam-se,
portanto, como a incapacidade do sistema capitalista em determinados momentos
da história de promover a integração social por meio das regras sociais
vigentes. Em outras palavras, o modo de regulação, constituído por normas
jurídicas, valores, mecanismos de conciliação e integração institucionais entra
em conflito com o regime de acumulação. A consequência disso é que a ligação
entre Estado e sociedade civil, mantida, como foi visto, mediante a utilização
de mecanismos repressivos e de inculcação ideológica, começa ruir. O sistema de
regulação entra em colapso, o que resulta em conflitos entre instituições
estatais, independência de órgãos governamentais que passam a se voltar uns
contra os outros e funcionar para além de qualquer previsibilidade, falta de
direção governamental e instabilidade política15. Não se torna mais possível
convencer as pessoas de que viver debaixo de certas regras é normal e, a
violência estatal passa a ser recorrente como meio de controle social.
O racismo e as
crises
A crise de 1873,
o imperialismo e o neocolonialismo
A história do
racismo moderno se entrelaça com a história das crises estruturais do
capitalismo. A necessidade de alteração dos parâmetros de intervenção estatal a
fim de retomar a estabilidade econômica e política – e aqui entenda-se
estabilidade como o funcionamento regular do processo de valorização
capitalista – sempre resultou em formas renovadas de violência e estratégias de
subjugação da população negra.
A primeira
grande crise do capital, de 1873, resultou na alteração brutal das relações
capitalistas. Além de alterar toda a produção industrial do mundo, redefinir o
equilíbrio político e militar e alterar todo o sistema financeiro e monetário
internacional, a crise de 1873 foi o ponto de partida para o imperialismo e,
mais tarde, para a primeira grande guerra16.
O imperialismo
marcou o início da dominação colonial e da transferência das disputas
capitalistas do plano interno para o plano internacional. Isso porque a crise
de superacumulação de capital obrigou o capitalismo a expandir-se além das
fronteiras nacionais. Essa é a explicação econômica do imperialismo, mas que
também teve como base um argumento ideológico preponderante: o racismo.
A ideologia
imperialista baseou-se no racismo e na ideia eurocêntrica do progresso. Os
povos da África, por exemplo, precisavam ser “salvos” pelo conquistador europeu
de seu atraso natural. Essa ideologia racista, somada ao discurso pseudocientífico
do “darwinismo social” – que afirmava a superioridade “natural” do homem branco
–, foram o elemento legitimador da pilhagem, assassinatos e destruição
promovida pelos europeus no continente africano17.
“A fúria da
conquista colonial, que teve em considerações racistas de ‘superioridade
civilizacional’ seu principal alicerce ideológico (até setores da Internacional
Socialista, confinada basicamente à Europa, admitiam a expansão colonial em
nome da ‘obra civilizadora’ e seus países, e se definiam, como o alemão Eduard
David, ‘socialimperialistas’) produziu vítimas em número maior aos holocaustos
europeus do século XX, e fez também nascerem movimentos de resistência, que,
finalmente, incorporaram os povos coloniais à luta política mundial
contemporânea.”18
Achille Mbembe,
em Crítica da razão negra, apresenta os laços inextricáveis entre “morte”
e “negócio” na esteira da relação entre imperialismo, colonialismo e racismo:
“Esta brutal
investida fora da Europa ficará conhecida pelo termo “colonização” ou “imperialismo”.
Sendo uma das maneiras de a pretensão européia ao domínio universal se
manifestar, a colonização é uma forma de poder constituinte, na qual a relação
com a terra, as populações e o território associa, de modo inédito na história
da Humanidade, as três lógicas da raça, da burocracia e do negócio (commercium).
Na ordem colonial, a raça opera enquanto princípio do corpo político. A raça
permite classificar os seres humanos em categorias físicas e mentais
específicas. A burocracia emerge como um dispositivo de dominação; já a rede
que liga a morte e o negócio opera como matriz fulcral do poder. A força passa
a ser lei, e alei tem por conteúdo a própria força19.
A bolsa de
valores, o empreendimento colonial e o desenvolvimento do capital financeiro são,
ao fim e ao cabo, os fundamentos econômicos que permitiram a constituição do
racismo e do nacionalismo como a manifestação da ideologia do capitalismo após
a grande crise do século XIX.
A crise de 1929,
o Welfare State e a nova forma do racismo
Após a grande de
depressão de 1929 e a segunda grande guerra, o arranjo social estabilizador
resultou no regime fordista de acumulação e no Welfare State. A produção
industrial em larga escala e o consumo de massa foram articulados com a
ampliação de direitos sociais e políticas de integração de grupos sociais ao
mercado consumidor. Entretanto, mesmo o Estado Social keynesiano ou Welfare
State foi incapaz de lidar com os problemas sociais que estruturam o
capitalismo. A desigualdade é um dado permanente do capitalismo, que pode ser,
a depender de circunstâncias históricas e arranjos politicos específicos, no
máximo, maior ou menor.
Mas como lembra
David Harvey, mesmo na “Era de ouro do capitalismo”, o acesso aos direitos
sociais pelos trabalhadores não foi simétrico e variava de acordo com a
capacidade produtiva do país, o setor da economia e o grupo social a que
pertencia o trabalhador. Setores de alto risco da economia e países de fraca
demanda interna e com baixa capacidade de inovação tecnológica possuíam fracas
redes de proteção social, com baixa permeabilidade às reivindicações da classe
trabalhadora. Havia setores fordistas que se serviam de bases não fordistas de
contratação, o que significa que alguns trabalhadores eram submetidos à
superexploração ou mesmo ao trabalho compulsório, ainda que sob a égide de um
Estado social e democrático20.
Outra importante
distinção feita por Harvey para se compreender as limitações do Welfare
State é entre os setores “monopolista” e “competitivo” da indústria. O
setor monopolista caracteriza-se por alta demanda, em que os conflitos
encontravam lugar para converter-se em “direitos”. Já o “setor competitivo” é
de alto risco, baixos salários e subcontratação e é nele que mulheres, negros e
imigrantes estão alocados, longe da proteção de sindicatos fortes e da
incidência de direitos sociais. Assim que racismo e sexismo colocam
determinadas pessoas em seu “devido lugar”, ou seja, nos setores menos protegidos
e mais precarizados da economia.
A enorme
contradição de uma sociedade em que se pregava a universalidade de direitos e
que, ao mesmo tempo, negros, mulheres e imigrantes eram tratados como caso de
polícia, gerou movimentos de contestação social que colocavam em xeque a
coerência ideológica e a estabilidade política do arranjo socioeconômico do
pós-guerra. Ressalte-se que até mesmo o movimento sindical e as organizações de
esquerda mostraram profundas limitações – assim como ocorre ainda hoje -, para
a realização de uma crítica e até uma autocrítica que expusesse o racismo e o
machismo que impregnavam suas próprias estruturas. A única forma de lidar com a
denúncia dos movimentos sociais às contradições do Welfare State foi
a criminalização e a perseguição aos “radicais”, “criminosos” e “comunistas”
que ameaçavam as bases de uma sociedade livre21.
Neoliberalismo e
racismo
A crise do
Estado de Bem Estar social e do modelo fordista de produção dá ao racismo uma
nova forma. O fim do consumo de massa como padrão produtivo predominante, o
enfraquecimento dos sindicatos, a produção baseada em alta tecnologia e a
supressão dos direitos sociais em nome da austeridade fiscal tornaram
populações inteiras submetidas às mais precárias condições ou simplesmente
abandonadas à própria sorte, anunciando o que muito consideram o esgotamento do
modelo expansivo do capital.
Chama-se por
austeridade fiscal o corte das fontes de financiamento dos “direitos sociais” a
fim de transferir parte do orçamento público para o setor financeiro privado
por meio dos juros da dívida pública. Em nome de uma pretensa “responsabilidade
fiscal” segue-se a onda de privatizações, precarização do trabalho e
desregulamentação de setores da economia. Do ponto de vista ideológico, a
produção de um discurso justificador da destruição de um sistema histórico de
proteção social revela a associação entre parte dos proprietários dos meios de
comunicação de massa e o capital financeiro: o discurso do empreendedorismo, da
meritocracia, do fim do emprego e da liberdade econômica como liberdade
política são diuturnamente martelados nos telejornais e até nos programas de
entretenimento. Ao mesmo tempo, naturalizase a figura do inimigo, do “bandido”
que ameaça a integração social, distraindo a sociedade que, amedrontada pelos
programas policiais e pelo noticiário, aceita a intervenção repressiva do
Estado em nome da segurança, mas que, na verdade, servirá para conter o
inconformismo social diante do esgarçamento provocado pela da gestão neoliberal
do capitalismo. Mais do que isso, o regime de acumulação que alguns denominam
de pós-fordista dependerá cada vez mais da supressão da democracia22. A captura
do orçamento pelo capital financeiro envolve a formulação de um discurso que
transforma decisões políticas, em especial as que envolvem finanças públicas e
macroeconomia, em decisões “técnicas”, de “especialistas”, infensas à participação
popular.
O esfacelamento
da sociabilidade regida pelo trabalho abstrato e pela “valorização do valor”
resulta em terríveis tragédias sociais, haja vista que o movimento da economia
e da política não é mais de integração ao mercado (há que se lembrar que na
lógica liberal o “mercado” é a sociedade civil). Como não serão integrados ao
mercado, seja como consumidores ou como trabalhadores, jovens negros, pobres,
moradores de periferia e minorias sexuais serão vitimados por fome, epidemias
ou pela eliminação física promovida direta ou indiretamente (e.g. corte nos
direitos sociais) pelo Estado. Enfim, no contexto da crise, o racismo é um
elemento de racionalidade, de “normalidade” e que se apresenta como modo de
integração possível de uma sociedade em que os conflitos tornam-se cada vez
mais agudos.
A superação do
racismo passa pela reflexão sobre formas de sociabilidade que não se alimentem
de uma lógica de conflitos, contradições e antagonismos sociais que não podem
ser resolvidos, no máximo mantidos sob controle. Todavia, a busca por uma nova
economia e por formas alternativas de organização é tarefa impossível sem que o
racismo e outras formas de discriminação sejam compreendidas como parte
essencial dos processos de exploração e de opressão de uma sociedade que se
quer transformar.
* * *
Silvio Luiz de
Almeida é natural de São Paulo, capital. Jurista e filósofo, doutor em
filosofia e teoria geral do direito pela Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo (Largo São Francisco), é autor, entre outros de Sartre:
direito e política: ontologia, liberdade, revolução coordenador do
dossiê da Margem
Esquerda sobre “Marxismo e a questão racial”, revista semestral da
Boitempo, de cujo conselho editorial ele integra. Atualmente Preside o Instituto
Luiz Gama, entidade com atuação na área direitos humanos e leciona nas
Faculdades de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade
São Judas Tadeu. Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
Neste vídeo para
a TV Boitempo, Silvio Luiz de Almeida disseca o arranjo estrutural do
capitalismo, suas crises e o racismo nas relações político-econômicas. O
depoimento foi colhido por Artur Renzo na sede da Boitempo em 2017.
Confira aqui mais
vídeos do Silvio Almeida em nosso canal no YouTube.
NOTAS
1 BOYER,
Robert. Teoria da regulação: os fundamentos. São Paulo: Estação Liberdade,
2009, p. 48.
2 BOYER, Robert. Teoria da regulação: os fundamentos. São Paulo:
Estação Liberdade, 2009, p. 51. No mesmo sentido ver BRUNHOFF, Simone de. Estado
e capital: uma análise da política econômica. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1985, p. 17.
3 É interessante notar que os discursos racistas assumem diferentes
modulações a depender do contexto social, cultural e econômico. Como nota Van
Dijk, uma das características centrais do racismo contemporâneo é a sua negação,
“ilustrada de modo típico nas conhecidas ressalvas do tipo ‘não tenho nada
contra negros, mas…”. VAN DIJK, Teun A. Discurso e poder. São Paulo:
Contexto, 2015, p. 155.
4 HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado. Rio de Janeiro:
Revan, 2010, p. 37
5 Idem, Ibidem, p. 37-38
6 Idem, Ibidem, p. 37
7 Idem, Ibidem, p. 39-40
8 Idem, Ibidem, p. 40.
9 Idem, Ibidem, p. 40
10 Idem, Ibidem, p. 86
11 “colocar a forma de socialização capitalista como ponto de partida de
uma análise do Estado não quer dizer que tais antagonismos não sejam
essenciais, ou que apresentem “contradições secundárias” subordinadas. Ao
contrário, a relação com a natureza, de gênero, a opressão sexual e a racista
estão inseparavelmente unidas com a relação de capital, e não poderiam existir
sem ela. No entanto, o decisivo é que o modo de socialização capitalista,
enquanto relação de reprodução material, é determinante na medida em que
impregna as estruturas e as instituições sociais – as formas sociais determinadas
por ele – nas quais todos essas antagonismos sociais ganham expressão e
ligam-se uns aos outros. HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado.
Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 134
12 ALMEIDA, Silvio Luiz de. “Estado, direito e análise materialista do
racismo”. In: Celso Naoto Kashiura Junior; Oswaldo Akamine Junior, Tarso de
Melo. (Org.). Para a crítica do direito: reflexões sobre teorias e
práticas jurídicas. São Paulo: Outras Expressões; Dobra universitário, 2015, p.
747-767.
13 A sociedade capitalista é, em razão de seus antagonismos e conflitos
estruturais, fundamentalmente portadora de crise, e por isso, só pode ser
estável em suas respectivas estruturais sociais, políticas e institucionais por
períodos limitados. Seu desenvolvimento não transcorre nem linear, nem
continuamente; as fases de relativa estabilidade são sempre interrompidas por
grandes crises. …” Idem, Ibidem, p. 131.
14 HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado. Rio de Janeiro:
Revan, 2010, p. 134.
15 Idem, Ibidem, p. 134.
16 COGGIOLA, Osvaldo. As grandes depressões (1873-1896 e 1929-1939):
fundamentos econômicos, consequencias geopolíticas e lições para o presente.
São Paulo: Alameda, 2009, p. 104.
17 A população da ‘Africa negra’ era, no século XIX, de três a quatro
vezes menor do que no século XVI. A conquista colonial capitalista (com uso de
artilharia contra, no máximo, fuzis coloniais), o trabalho forçado multiforme e
generalizado, a repressão das numerosas revoltas por meio do ferro e do fogo, a
subalimentação, as diversas doenças locais, as doenças importadas e a
continuação do tráfico negreiro oriental, reduziram ainda mais a população que
baixou para quase um terço. Idem, Ibidem, p. 118.
18 Idem, Ibidem, p. 120.
19 MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014,
p. 105.
20 HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2011, p.
132.
21 MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial: o homem
unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
22 DARDOT, Pierre; LAVAL, Cristian. A
nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
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Silvio Luiz de. “Estado, direito e análise materialista do racismo”. In: Celso
Naoto Kashiura Junior; Oswaldo Akamine Junior, Tarso de Melo. (Org.). Para a
crítica do direito: reflexões sobre teorias e práticas jurídicas. São Paulo:
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fundamentos econômicos, consequencias geopolíticas e lições para o presente.
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2015
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