By Laís Alegretti -
@lais.alegretti Da BBC News Brasil em Londres
'Se
estamos ainda hoje no Brasil e somos maioria, é porque o povo negro vem
resistindo, mesmo com tantas ações que visam o extermínio desse povo', diz
Djamila Ribeiro.
A
filósofa e escritora Djamila Ribeiro define assim o comportamento do brasileiro
em relação ao racismo: todo mundo sabe que existe, mas ninguém acha que é
racista.
Nesta
entrevista à BBC News Brasil, a autora do Pequeno Manual Antirracista diz o que
deve ser feito por quem quer combater o racismo e sobre o papel dos pais na
educação antirracista de seus filhos.
"Não
basta só reconhecer o privilégio, precisa ter ação antirracista de fato. Ir a
manifestações é uma delas, apoiar projetos importantes que visem à melhoria de
vida das populações negras é importante, ler intelectuais negros, colocar na
bibliografia. Quem a gente convida pra entrevistar? Quem são as pessoas que a
gente visibiliza?"
Ribeiro
é mestre em filosofia política pela Unifesp e uma das vozes mais influentes do
movimento pelos direitos das mulheres negras no Brasil. Ela está na lista
da BBC de 100 mulheres mais influentes e inspiradoras do mundo.
Sobre
o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos e os protestos contra
violência policial, Djamila destaca que é importante se indignar, mas aponta
que no "racismo à brasileira" temos "tendência de olhar pra fora
e não enxergar o que acontece no Brasil".
Ribeiro
diz que os protestos são importantes, mas lembra que não são a única forma de
resistência. "Se estamos ainda hoje no Brasil e somos maioria, é porque o
povo negro vem resistindo, mesmo com tantas ações que visam o extermínio desse
povo."
Leia,
a seguir, os principais trechos da entrevista:
BBC
News Brasil - Qual é sua avaliação sobre os protestos contra violência racial
que estão acontecendo nos EUA e no Brasil? No seu livro mais recente,
você menciona que o tema só ganha destaque quando ocorre um grande caso. Quais
são as semelhanças e diferenças que você vê nos movimentos dos dois países?
Djamila Ribeiro
- Tanto no Brasil como nos EUA, a violência racial é um tema que
tem sido debatido historicamente pelos movimentos negros, mas nos EUA, o que
tem acontecido nos últimos tempos — as manifestações, as reações em relação ao
assassinato do George Floyd — pelo que acompanhei, só teve uma manifestação
dessa magnitude na época do movimento dos direitos civis, mas isso não quer
dizer que as pessoas não estivessem se manifestando.
No
Brasil, às vezes a gente faz umas comparações 'ah, mas nos Estados Unidos as
pessoas estão nas ruas e no Brasil, não', como se no Brasil a gente não tivesse
uma série de lutas e resistências contra esse sistema de opressão. Não podemos
reduzir resistência somente a manifestações.
Claro
que as manifestações são fundamentais: é importante ir às ruas, denunciar o que
está acontecendo, mas às vezes a gente limita isso à questão das manifestações
e muitas vezes no Brasil as pessoas apoiam o que está acontecendo lá sem
enxergar a realidade do que está acontecendo no Brasil. Esse é um dos pontos mais
críticos pra mim, de ver pessoas se manifestando nas redes sociais, muito
indignadas, sendo que Brasil é um dos países que mais mata, tem uma das
polícias mais violentas.
Claro
que o que acontece lá tem que gerar nossa indignação, mas eu fico refletindo
sobre o racismo à brasileira, que a gente tem muito mais uma tendência de olhar
pra fora e não olhar pra nossa própria realidade, a não enxergar o que acontece
no Brasil.
Sinto
um cinismo por parte de muitas pessoas que quando a gente convoca atos no brasil
essas pessoas não vão ou naturalizaram esses assassinatos e depois elas ficam
muito chocadas ou muito surpresas com o que acontece nos EUA sem enxergar nossa
realidade aqui.
É
importantíssimo a gente refletir, parar de naturalizar aqui no Brasil esses
assassinatos de jovens negros no Brasil — a cada 23 minutos um jovem negro é
assassinado no Brasil. E o quanto a gente precisa pensar esses desafios aqui
dentro do nosso país, sobretudo num momento de muita repressão aos movimentos
sociais, num momento de corte de políticas públicas para populações negras.
Acho
extremamente importante o que acontece nos Estados Unidos, mas chamo atenção
para que as pessoas tenham mais consciência sobre o que se passa aqui no
Brasil, na nossa realidade, que as pessoas negras historicamente vêm
denunciando mas que infelizmente as pessoas parece que não enxergam quão grave
é esse problema ético que temos no país, de assassinato de pessoas negras.
BBC
News Brasil - Você mencionou que os protestos não são a única forma de fazer
resistência. De que forma essa resistência acontece hoje no Brasil?
Ribeiro
- Historicamente, desde o período da escravidão, os próprios
quilombos, que foram organizações políticas de resistência e enfrentamento à
escravidão, o Quilombo dos Palmares teve mais de cem anos de existência
incomodando a Coroa Portuguesa. As próprias revoltas, como Balaiada e dos
Malês, diversas revoltas indígenas.
No
Brasil, a gente às vezes é privado da nossa própria história de resistência. O
que nos contam é que os negros foram escravizados e ponto, não falam que
existiram resistências. É muito importante saber que os quilombos foram
organizações políticas de resistência e até hoje temos comunidades descendentes
de quilombos, os quilombolas, ainda lutando para ter direito à titulação das
suas terras.
A
gente tem movimento negro, frente negra brasileira, movimento negro que lutou
por ações afirmativas quando foram adotadas no Brasil - a primeira universidade
a adotar cotas foi UERJ em 2001, a segunda foi a UnB em 2004 e depois teve a
lei federal de cotas em 2012. Essas conquistas são reivindicações históricas
dos movimentos negros.
A
própria questão de hoje ter aumentando o número de pessoas que se declaram
negras no Brasil é luta dos movimentos negros. A gente vive num país que foi
fundado sob esse mito da democracia racial, de que aqui não existiria racismo e
quanto isso dificultou a construção de uma identidade negra, o fato de a gente
não ter acesso aos nossos ancestrais, no sentido de que documentos referentes à
escravidão foram destruídos, então eu não sei, por exemplo, se meus ancestrais
vieram da Nigéria ou de Guiné Bissau. Isso gera um abismo, uma lacuna na
construção da nossa identidade. O descendente de italiano sabe de onde o
tataravô veio, a cidade na Itália. A gente não sabe.
Essas
construções todas — e não foram a toa, são deliberadas —, essa ideia de que no
Brasil somos todos mestiços, de que não tem como saber quem é negro, mas na
hora de discriminar todo mundo sabe quem é, dificultou uma construção de
identidade negra e os movimentos negros vêm denunciando isso, e isso também é
forma de resistência.
E
vieram conscientizando a população negra a respeito da nossa ancestralidade. As
próprias religiões de matriz africana no Brasil, historicamente criminalizadas.
Houve época em que as pessoas negras não podiam cultuar seus orixás — e aí vem
o sincretismo, que muitas pessoas veem como negativo, mas pelo sincretismo
conseguiram continuar cultuando seus orixás.
Se
hoje ainda existem terreiros das diversas denominações de religiões de matriz
africana, isso é uma prova de resistência também. É importante a gente
visibilizar isso pra gente não resvalar nessa visão de que não existe luta. Se
a gente olhar quantos líderes quilombolas foram assassinados nos últimos anos,
lutando pelo direito à terra, quantos líderes indígenas, em regiões do Brasil
que muitas vezes a gente não noticia porque não é Sudeste, não é Sul.
Então,
existem várias formas de resistência, de lutas políticas de diversas
organizações do movimento negro, que é importante ressaltar: se estamos ainda
hoje no Brasil e somos maioria, é porque o povo negro vem resistindo, mesmo com
tantas ações que visam o extermínio desse povo.
BBC
News Brasil - No mesmo momento em que a violência policial ganha destaque no
debate público, vimos viralizar um vídeo de um homem branco, morador de
condomínio de luxo de São Paulo e suspeito de violência doméstica, dizer que
ganha 300 mil reais, xingar o policial de 'lixo', dizer que ele poderia
ser macho na periferia e que 'Aqui é Alphaville, mano'. O que esse episódio diz
sobre a política de segurança pública do nosso país? E quem são os policiais no
Brasil?
Ribeiro
- Muitas pessoas ficaram chocadas com esse vídeo, mas pra nós,
pessoas negras, é o retrato do privilégio branco no Brasil. Ele sabia muito bem
que nada ia acontecer com ele. Ele sabe muito bem como a polícia age nas
periferias, mas ele sabia que ali a polícia não ia fazer nada, tanto que ele
fala para o policial 'vem aqui se você é macho' e o policial não vai. Então,
ele sabe que o lugar social dele, pessoas como ele, não vão sofrer esse tipo de
violência, ele reconhece o privilégio dele. Aquele vídeo é a síntese do
privilégio branco no Brasil.
Nós,
como pessoas negras, jamais falaríamos assim com a polícia. Eu tenho dois
irmãos e desde muito cedo meus pais falavam pros meus irmãos: 'saiam sempre com
seus documentos, se a polícia parar, abaixa a cabeça e não responda'. Isso faz
parte da educação de crianças negras no Brasil: como lidar com a polícia se a
polícia te parar. Nossos pais e nossas mães têm medo da abordagem.
Meus
irmãos já foram parados várias vezes voltando do trabalho, por exemplo. Isso
faz parte da educação de pessoas negras. As pessoas brancas se surpreendem com
isso, mas a gente sabe que não pode sair sem documento de forma alguma e se a
polícia para, a gente tem que responder 'sim, senhor' e 'não, senhor'. E mesmo
fazendo isso a gente não sabe o que acontece.
É
importante dizer: se o Brasil é um dos países em que mais mata, também é o país
em que mais morrem policiais nesse confronto. Então, é o Estado financiando
esse confronto de pessoas pobres, de territórios periféricos, contra outras
pessoas de territórios periféricos. Esses policiais na maioria das vezes saíram
desses mesmos lugares periféricos, muitos deles são negros, e são esse braço
armado do Estado e o Estado financiando essa guerra às drogas que nada mais é
do que guerra à população negra.
É
necessário pensar uma outra forma de segurança pública no brasil, que não seja
de criminalização dos espaços periféricos, uma política de descriminalização
das drogas no Brasil, porque a gente sabe a quem serve essa criminalização —
serve ao encarceramento em massa de pessoas negras e ao extermínio de pessoas
negras, como se nos territórios ricos as pessoas não consumissem drogas.
Se
a gente for pra qualquer festa de universidade, a gente sabe que as pessoas
consomem, mas onde vão dizer que esse combate será feito? Então, é necessário
pensar, como muitos países têm discutido, em descriminalizar algumas drogas,
porque isso impacta diretamente nessa guerra dessas pessoas que vêm dos mesmos
espaços e territórios enquanto beneficia a estrutura branca, rica e patriarcal
no Brasil.
BBC
News Brasil - No Pequeno Manual Antirracista, você aponta que 'é
impossível não ser racista tendo sido criado numa sociedade racista. É algo que
está em nós e contra o que devemos lutar sempre'. Você poderia explicar por que
é tão prejudicial que a gente tente focar a discussão do racismo como algo
individual, com frases como 'eu não sou racista'?
Ribeiro
- Esse é comportamento do brasileiro. Todo mundo sabe que o
racismo existe, mas ninguém é racista. Tem uma pesquisa histórica da década de
1990, da Folha de S.Paulo, de que 90% das pessoas diziam conhecer pessoas
racistas e diziam que o racismo existia, mas quando perguntavam se elas eram
racistas, elas diziam que não.
Tem
no Brasil uma discussão de achar que o racismo é só uma questão individual, só
quando alguém destrata uma pessoa negra ou a discrimina. E falta um
entendimento do racismo como sistema de opressão, e aí passa por a gente
conhecer nossa história como povo brasileiro.
Muitos
brasileiros desconhecem que o Brasil foi o último dos países das Américas a
abolir a escravidão, o impacto disso na construção da nossa sociedade, os fatos
históricos que construíram essas desigualdades, a própria constituição do
Império de 1824, de que só os cidadãos livres podiam estudar — e quem eram os
cidadãos livres em 1824 —, a própria lei de terras de 1850, que a partir
daquele momento, pra ter terra, só comprando terra do Estado—- e quem podia
comprar terra em 1850 —, foram várias ações que criaram essas desigualdades.
As
pessoas têm dificuldade de entender que durante três séculos, quase quatro
séculos, as pessoas negras foram tratadas como mercadoria, e construíram as
riquezas desse país sem ter acesso a essas riquezas. E a partir daí essas
desigualdades foram sendo construídas, então se pessoas negras hoje não ocupam
espaços de poder, eles partem de um lugar social que suas oportunidades são
restringidas por causa do racismo.
Então,
às vezes é esse entendimento que falta às pessoas — e de não discutir o lugar
social da branquitude também. De chegar em um espaço em um país de maioria
negra e só ter pessoas brancas nesse espaço e isso ser naturalizado e não ser
questionado. Se pessoas brancas estão ocupando esses espaços, será que é por
que elas são mais inteligentes e geniais ou por que tiveram condições concretas
para estar naqueles espaços?
O
grande problema do brasileiro é naturalizar o lugar do privilégio como se ele
tivesse sido providencialmente fixado e não construído à base da opressão de
outros grupos, então isso faz com que as pessoas achem que basta o indivíduo
querer — 'é só ele se esforçar' — negando toda essa estrutura que impossibilita
condições concretas para que as populações negras tenham mobilidade social,
consiga acessar lugar de dignidade e cidadania no Brasil.
O
primeiro passo é desnaturalizar esse olhar e conhecer a nossa história enquanto
povo brasileiro. Para discutir diversidade, a gente precisa discutir
desigualdade. Quando a gente conhece a origem social das desigualdades, a gente
vai entender as reivindicações históricas dos movimentos negros e as pessoas
brancas vão entender a importância de discutir a partir do seu lugar social e
como ele foi construído historicamente.
BBC
News Brasil - Você mostra que ser antirracista passa por uma série de ações,
que vão desde se informar sobre negritude e reconhecer os privilégios das
pessoas brancas… Você pode dar alguns exemplos de atitudes antirracistas que as
pessoas podem tomar no dia a dia? No momento atual, o que é mais urgente?
Ribeiro
- No livro Pequeno Manual Antirracista, eu trago dez capítulos —
na educação, no trabalho, no afeto. Na educação, se a gente é educador, tem que
questionar a nossa bibliografia. Será que na nossa bibliografia tem autores e
autoras negros e negras? Se nós elaboramos o mundo, por que nossas elaborações
de mundo não estão presentes nessas bibliografias?
Se
é empregador, está empregando pessoas negras, criando de fato programas com
metas de diversidade para que pessoas negras tenham acesso? Se você coloca em
uma vaga que tem que ter inglês fluente, você já está delimitando ali que tipo
de pessoas vão se candidatar. Se você só coloca anúncios em universidades ditas
de ponta, você também já está escolhendo que pessoas você quer que trabalhem
ali.
É
preciso ter uma consciência, de fato, de como combater isso. O primeiro passo é
se informar. No livro, eu quis trazer essas ações propositivas — ler autores
negros, refletir sobre projetos de governo que você apoia — geralmente as
pessoas não leem programas de governo, elas vão no calor da emoção, no calor do
que está sendo dito no momento e não tem como discutir antirracismo se a gente
apoia projetos que visam o sucateamento de políticas públicas importantes para
populações historicamente discriminadas, se são governos autoritários, o que
significa que movimentos sociais vão sofrer muito mais repressão naquele
momento… Então, para além das ações do dia a dia que podemos tomar, precisamos
pensar no macro os projetos que estamos apoiando.
BBC
News Brasil - Você escreve que as pessoas negras são levadas desde cedo a
refletir sobre sua condição racial e diz que aos seis anos entendeu que ser
negra era um problema para a sociedade, enquanto seus colegas brancos não
precisavam pensar qual era o espaço deles. Qual é o papel dos pais na formação
de crianças (e depois adultos) antirracistas?
Ribeiro
- É um papel fundamental. Muitos desses pais vieram da mesma
escola que eu vim, que conta aquela história de que negros foram escravos e
ponto e que a princesa Isabel foi a grande redentora. Aí temos a Lei 10.639, de
2003, que alterou a lei de diretrizes e bases da educação, incluindo a
obrigação do estudo da história africana e afro-brasileira nas escolas, uma lei
muito importante, que ainda sofremos com os desafios da implementação dela. Em
alguns lugares foi implementada, mas a depender da vontade política de quem
está no poder acaba não sendo.
Essa
lei é fundamental não só para crianças negras, mas para as brancas entenderem
que o mundo é constituído por pessoas negras, porque elas terão outra visão e
construção das pessoas negras. Os pais podem, na escola que vão matricular o
filho, saber se essa lei está sendo implementada, se não, cobrar da escola que
seja, olhar o material didático para ver se contempla a multiplicidade do povo
brasileiro e das narrativas múltiplas que temos, apresentar aos filhos
referência de pessoas negras — seja em livros, em brinquedos, e buscar conhecer
de fato pessoas negras, que as crianças convivam com espaço diverso.
Muitas
vezes o convívio que essas crianças têm com pessoas negras são as empregadas e
as babás, e simplesmente não entendem a importância de trazer outras
referências para o convívio. Os pais precisam se conscientizar da educação que
estão oferecendo aos seus filhos, quais são as possibilidades, porque a partir
delas as crianças vão criar suas visões de mundo - que podem ser limitadas e
empobrecidas, que só contempla um grupo social, ou pode ser uma visão muito
mais ampla, em que essas crianças tenham possibilidade de reconhecer as
humanidades dos diferentes grupos.
E
também entender que não basta só a educação dentro de casa. Essa criança vai
para a escola, ela encontra os amigos. É um desafio. Eu tenho uma filha de 15
anos, uma menina negra, que desde cedo foi apresentado a ela as referências de
pessoas negras, imagens positivas de pessoas negras, e ela foi para a escola e
sofreu racismo. As instituições são racistas. Então eu entendi que não bastava
só eu fazer ali e não estar atenta aos espaços que minha filha frequentava. É
importantíssimo eu estar atenta a isso para que eu vá nesses espaços também,
cobrar que fossem espaços que de fato a respeitassem. Fora isso, tem televisão,
a mídia, internet. É necessário ter essa atenção a esses outros espaços que as
crianças têm acesso.
BBC
News Brasil - Ponto crucial desse debate é que negros, que são mais da metade da
população brasileira, ocupem posições de poder e visibilidade. Nesta semana,
ouvimos o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, chamar o movimento
negro de 'escória maldita'. Como você viu esse comentário? O que ele
representa?
Ribeiro
- Eu tenho até evitado falar sobre esse senhor
porque para mim a questão é o governo que ele representa. Independente de ele
estar lá, esse governo tem muito claro quais são suas políticas em relação à
população negra e aí usa de bode expiatório um homem negro para dizer que não é
racista, pra se esquivar dessa responsabilidade e dizer 'olha, é um de vocês
que está dizendo isso, não sou eu'.
Então,
essa é uma artimanha muito utilizada por pessoas conservadoras para se esquivar
da responsabilidade de ter um governo extremamente violento para com a
população negra. Ali ele não está como um indivíduo, mas como representante de
um governo. Claro que vamos combater o discurso dele politicamente, porque é um
discurso extremamente violento e vejo até como criminoso, sem dúvida. Mas não
podemos tirar o foco do governo que ele representa.
E
é interessante que não temos a mesma fúria com a Damares, que é uma mulher,
ministra das mulheres, e fala coisas absurdas em relação às mulheres. Mas em
relação às pessoas negras a gente pesa mais a mão, como se automaticamente, por
ser negra, ela deveria ser militante. E pessoas negras são diversas, como todas
as outras.
Algumas
têm perspectivas emancipatórias e outras infelizmente vão legitimar discursos
do status quo. Assim como você tem pessoas brancas da esquerda, da direita, da
extrema direita. Mas quando uma pessoa branca é conservadora, ou como a
Damares, por exemplo, que vai contra as reivindicações do movimento feminista,
não se tem tanta cobrança em relação a isso, mas com as pessoas negras se tem.
É
importante entender que nós, enquanto pessoas negras conscientes das questões
raciais do Brasil, não temos que dar respostas em relação ao que esse senhor
fala. A sociedade tem que cobrar do governo que autoriza esse tipo de discurso,
esse tipo de cidadão ocupando esse espaço.
Tenho
muito receio de que isso se torne uma briga de negros contra negros, que é isso
que esse governo que aconteça, e a gente deixe de ver o que está por trás desse
bode expiatório que é colocado ali pra falar esse tipo de absurdo que na
verdade é o que o governo Bolsonaro representa. Então, a gente tem sim que
combater a fala desse senhor, mas não podemos esquecer que nosso alvo é o
governo Bolsonaro utilizando homem negro de uma maneira a atingir pessoas
negras conscientes no Brasil.
BBC
News Brasil - Em uma live nesta semana, você disse que estava abismada com
a quantidade de pessoas te assistindo. Mas também diz que as pessoas não devem
perder tempo respondendo alguns tipos de comentários. Gostaria de saber se você
vê as redes sociais como aliadas para promover debates que o movimento negro
quer levantar.
Ribeiro
- Eu acho que sim, a depender das estratégias que a gente usa. Eu
sou uma pessoa que passei a ter muita visibilidade a partir das redes sociais,
apesar de ser militante há muitos anos. A gente também não pode esquecer que ao
mesmo tempo que a gente ganha uma amplificação das nossas vozes, a internet
também amplifica as vozes das pessoas que pensam o contrário do que a gente
pensa, então a gente também enfrenta aí uma série de ataques nas redes sociais
vindos dessas pessoas.
Acho
que não temos que perder tempo ouvindo essas pessoas porque é um desvio de
energia. A gente já tem tão pouco espaço no Brasil, tão pouca visibilidade, que
o pouco espaço que a gente tem é importante usar como estratégia para comunicar
nossas pautas para o maior número de pessoas.
Mesmo
com os limites da internet, entendendo que no Brasil 30% da população não tem
acesso à internet, entendendo que mesmo na internet sofremos com monopólio,
dado esse limite, é importante reconhecer que muitas pessoas negras conseguiram
ali ter um canal para se comunicar e para visibilizar nossas questões. Se a
gente usa com estratégia, ela é uma grande aliada.
Quando
eu digo com estratégia é isto: não perder nossa energia com esse tipo de
distração, de ataque. É importante chamar as pessoas para o diálogo, para a
reflexão.
BBC
News Brasil - Outro episódio que vimos essa semana foi o Felipe Neto, que é um
homem branco, criticar o silêncio do Neymar sobre a luta antirracista. Ele
disse que apagou o tuíte depois de integrantes do movimento negro o alertarem
de que uma pessoa branca não deve cobrar um negro sobre esse tema. Depois, ele
recebeu mensagens defendendo que o jogador poderia, sim, ser cobrado, devido à
sua posição. O que você defende em um episódio como este? E você pode
aproveitar para comentar sobre o fato de muitas vezes haver uma cobrança de que
o movimento negro seja homogêneo?
Ribeiro
- O Neymar é uma pessoa que nunca se posicionou sobre a questão
racial, que tem posturas conservadoras, de apoio ao governo atual, que é um
governo inimigo das nossas pautas. Então eu não esperaria um posicionamento
dele. Historicamente, sempre se mostrou alheio a essa questão. Então não é uma
pessoa que eu cobraria.
O
Felipe Neto, que teve posturas extremamente complexas no passado, e agora ele
reflete sobre isso, tem tido posicionamentos mais progressistas, eu acho
importante dialogar com público que ele tem, de milhões de pessoas, trazendo
essas questões. Mas às vezes não podemos cair num lugar de se empolgar demais e
achar que a questão vai se resolver se o Neymar se posicionar. Ele sempre
mostrou que não se posicionaria
.
Então é mais interessante o Felipe Neto cobrar seus pares sobre isso, que são
os grupos que se beneficiam dessa opressão do que cobrar um homem que nunca se
posicionou sobre essas questões.
Pessoas
negras são diversas. Existem pessoas que são conservadoras. Existem pessoas que
são alheias a essa questão, assim como pessoas brancas. Temos que tomar cuidado
com esse tipo de cobrança para não colocar pessoas negras sempre nesse lugar de
que tem que estar na luta, ser militante, ignorando sua subjetividade e suas
próprias construções.
Acontece
comigo também quando alguma pessoa negra faz um discurso conservador. Em
governos anteriores, tinha uma ministra negra que teve um posicionamento
conservador e várias pessoas foram me cobrar se eu não ia falar nada. Eu
respondi: bom, eu acho interessante porque quando um homem branco é exposto em
um escândalo de corrupção, ninguém cobra os outros homens brancos que deem
resposta sobre ele. Mas as pessoas acham que a gente tem que dar uma resposta
sobre todos.
As
pessoas negras não são vistas como indivíduos, são vistas como um grupo
homogêneo. As pessoas brancas são vistas como indivíduos. Se um indivíduo
branco comete um erro, o indivíduo é responsabilizado. Quando é uma pessoa negra,
o grupo inteiro leva a responsabilidade, negando que somos diferentes, negando
que estamos em espectros políticos diferentes ao do Neymar, por exemplo. Assim
como pessoas brancas não têm que dar resposta sobre o Bolsonaro, nós também não
temos que dar resposta sobre pessoas negras que cometem esse tipo de questão.
BBC
News Brasil - O lugar de fala pode ser usado como desculpa para se omitir?
Quando falamos sobre manifestações antirracistas, como cada um pode encontrar o
seu papel?
Ribeiro
- O lugar de fala é um conceito muito distorcido. Ou ele é usado
como interdito no debate, no qual eu não posso falar. Ou as pessoas usam como
desculpa para não ação: não tenho lugar de fala, não vou fazer nada. O lugar de
fala é uma discussão, sobretudo, em relação a locus social. O lugar de fala é
para romper com esse interdito que já está posto a nós, pessoas negras, de não
ter o mesmo espaço de existência, pessoas indígenas, pessoas de grupos
historicamente discriminados. Lugar de fala é pensar sobre esse regime de
autorização discursiva que impede que a gente esteja presente nos espaços.
Todo
mundo tem lugar de fala, porque todo mundo está localizado socialmente. Só que
o meu lugar social, de mulher negra no Brasil, é um lugar social de um grupo em
que as nossas condições restringem oportunidades. E o lugar social do
privilégio é o lugar que foi construído à base dessas opressões e que tem todos
os privilégios.
Então,
quando a pessoa branca entende isso, entende que faz parte de um grupo social
que não é natural, que é construído à base de opressão de outros grupos, por
isso que só tem ela presente dentro dos espaços. A partir disso, o que ela pode
fazer: o primeiro passo é desnaturalizar esse lugar e o segundo é entender
nossas reivindicações históricas por outras possibilidades de existência que
não sejam essas existências atravessadas pelas violências coloniais.
Para
as pessoas brancas, o primeiro passo é discutir branquitude no Brasil e ler o
que os autores e autoras negros estão fazendo, produzindo historicamente.
Porque, se não, ou fica num lugar de 'ah, não há nada que eu possa fazer' ou
num lugar de 'ah, me ensinem o que posso fazer'. Eu sempre falo: leiam os
livros que a gente já produziu. É importante entender a sua responsabilidade.
Quando
elas leem, entendem como podem agir melhor, entendendo a importância de que
agir muitas vezes é ceder, escutar, entender a importância de pensar estratégia
para ter mais pessoas negras naquele espaço, quais são as vozes que você
legitima, quais são as pessoas que você visibiliza, quais são as pessoas que
você resposta, quais são as vozes que você endossa. São só vozes como a sua ou
você entende a necessidade dessa pluralidade de vozes? O primeiro passo é ler o
que autores e autoras negros estão produzindo, porque a empatia é uma
construção intelectual. A partir do momento que a gente conhece uma realidade,
a gente entende como vai se posicionar politicamente em relação a essa
realidade. Sem conhecer, a gente não vai saber.
BBC
News Brasil - Pessoas brancas devem participar de protestos antirracistas ou
deve usar o argumento de que não sabe o que é ser negra e não deve participar?
Ribeiro -
Acho que deve, inclusive. Nos Estados Unidos, pessoas brancas estavam fazendo
um cordão ali, porque entendem que tem uma relação diferente da polícia com
elas. Acho que deve, porque o racismo é uma problemática branca, como diz a
Grada Kilomba. Não foi criado por nós. Então é importante que as pessoas
brancas se responsabilizem por isso e tenham de fato ações antirracistas,
porque esse é um problema que diz respeito à toda a sociedade, não é um
problema da população negra.
É
fundamental que as pessoas brancas cobrem atitudes, sobretudo nos espaços onde
não acessamos. Que elas cobrem, reivindiquem, entendam esse lugar social e a
importância de se manifestar e de agir em relação a essas questões. Não basta
só reconhecer o privilégio, precisa ter ação antirracista de fato. Ir a
manifestações é uma delas, apoiar projetos importantes que visem a melhoria de
vida das populações negras é importante, ler intelectuais negros, colocar na
bibliografia, quem a gente convida pra entrevistar, quem são as pessoas que a
gente visibiliza.
É
uma série de ações que devem ser tomadas e que as pessoas vão entender a partir
do momento que entenderem empatia como uma construção intelectual, que exige
empenho, exige esforço e não é algo que vai acontecer espontaneamente, porque
precisa ir desconstruindo essas visões e isso passa necessariamente pela
construção intelectual.
Fonte:
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52922015
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