Os juízos sintéticos inatos e as estruturas do sistema nervoso central





















Por: Carlos M. Laet R. de Souza 


Locke havia afirmado que a consciência humana era como uma tábula rasa moldada pelas experiências e negava a ideia cartesiana de conhecimentos inatos. Todo o conhecimento seria, portanto, decorrência das experiências (LOCKE, 2012). 

Hume reduziu a relação de causa e efeito a uma consequência da semelhança entre os fenômenos da natureza, sem a qual seriam impossíveis a inferência e os raciocínios sobre as operações naturais, restando apenas a memória e os sentidos como meios de apreensão da realidade. Toda a operação mental do espírito passava a se subordinar a meras tentativas e erros sobre a realidade dos fenômenos, implicando num nominalismo radical que negava qualquer sentido ao universal e mesmo a própria possibilidade do conhecimento científico (HUME, 2004). 

A filosofia cética de Hume traz, implicitamente, uma redução da importância da cognição no processo de conhecimento, na medida em que a mente apenas associaria ideias pela semelhança, sem nenhuma garantia de certeza. É o fundamento do associacionismo e de um dado reducionismo que enxerga a atividade mental como reflexos. 

Kant admitiu que os sentidos são a fonte dos conhecimentos, mas acrescentou estruturas a priori na percepção e no entendimento, sem as quais todo o material empírico transmitido pelas sensações consistiria num conjunto de impressões sem significado e incapaz de proporcionar o entendimento. No nível perceptivo, estavam o espaço e o tempo como estruturas inatas, que organizavam o material sensível e o tornavam compreensível. No entendimento, estavam as categorias, que permitiam à mente converter juízos sintéticos a posteriori em ciência (KANT, 1996). 

Os juízos analíticos, segundo o filósofo de Königsberg, eram tautológicos, nos quais o predicado estava contido no sujeito. Seriam juízos de identidade que não trazem conhecimento novo, restringindo-se a definir o sujeito é. Nos juízos sintéticos a posteriori o predicado é acrescentado ao sujeito, mas falta-lhes o caráter de universalidade e de necessidade, consistindo precisamente no que Hume concebeu como sendo o conteúdo do conhecimento humano. São juízos nos quais o predicado trazido pela experiência sensível é factual e contingente, limitado ao aqui e agora, sem caráter de universalidade e necessidade e, portanto, imprestável como conhecimento científico. 

Para Kant, a ciência é constituída por juízos sintéticos a priori que aumentam o conhecimento e têm caráter universal e necessário. Realmente, de que vale um conjunto de informações factuais que não podem ser identificadas como causas e efeitos? Mas existem mesmo estruturas inatas da percepção e um conhecimento a priori, formado por categorias que tornam os juízos sintéticos a posteriori passíveis de serem organizados como conhecimento científico, conforme regras universais e necessárias, fornecendo a previsibilidade dos efeitos a partir das causas? 

Para se tentar responder esta questão, é interessante analisar o tema à luz das neurociências, visando conferir se as estruturas citoarquitetônicas e funcionais do sistema nervoso central fornecem elementos para afirmar ou negar a hipótese proposta. 

Para tanto, adotarei a teoria monista, que supõe seja a consciência uma emanação das estruturas materiais do sistema nervoso central, em particular, do neocórtex. Neste texto, seria desnecessária e, talvez, inconveniente a análise do problema sob o foco das teorias dualistas como a de Descartes. Esta é uma questão incidental que traria complicações desnecessárias. 

Desde Lúria, a o sistema nervoso central tem sido entendido como um conjunto de estruturas que se concertam de uma forma complexa para produzir a atividade mental. Lúria concebeu unidades funcionais, sendo que a segunda e a terceira se dividem em três áreas cada qual (LÚRIA, 1981). A primeira unidade funcional é responsável pelo tônus necessário à atividade mental e está radicada principalmente no tronco encefálico. É ela que determina o grau de vigília da consciência por meio do sistema modulatório noradrenérgico. A segunda unidade cuida de receber, processar e armazenar informações e se situa no neocórtex dos lobos posteriores do cérebro. E a terceira unidade funcional, localizada no lobo frontal, está relacionada às denominadas funções executivas: planejamento, memória de trabalho, monitoramento e autocorreção, flexibilidade cognitiva, ação intencional e tantas outras faculdades superiores da mente (LÚRIA, 1981). 

A maior parte dos conhecimentos humanos advém da audição e da visão, sentidos mais utilizados pela educação familiar e escolar. Objetivando não alongar o texto, examinarei apenas a função visual para analisar a forma como este sentido é integrado no sistema nervoso. Contudo, convém lembrar que o mesmo padrão é encontrado na audição, olfato, gustação, tato, dor e propriocepção – aferência. E no que se refere à eferência, controle motor voluntário, observa-se a mesma complexidade e padrão, tendo em vista a existência de um processo decisório que implica, necessariamente, numa atividade mental consciente. 

A visão depende da luz que é captada pelos fotorreceptores situados na retina. As diversas áreas da retina são especializadas e a grande maioria de seus potenciais de ação, segue pelo nervo ótico, até o núcleo geniculado lateral do tálamo, de onde prossegue para a área primária da visão (também denominada córtex estriado ou V1), no sulco calcarino, localizado no lobo occipital. Em seguida, as imagens vão para as áreas secundária e terciária da visão, situados tanto nos lobos temporal como parietal. Fenômeno relevante neste processo é a retinotopia, que consiste na organização em que células vizinhas da retina fornecem informações a locais igualmente vizinhos no núcleo geniculado lateral e na área primária da visão (BEAR, 2008). Tal fenômeno explicita a forma como as informações da visão vão sendo “computadas” pelo sistema nervoso que as decompõem para reuni-las em seguida. 

O córtex estriado mostra apenas o contorno dos objetos, formando um esboço primitivo a ser aperfeiçoado nas demais áreas visuais (MACHADO, 2014). Em seguida, as informações visuais seguem por duas vias, a ventral e a dorsal, para as áreas secundárias da visão. Na ventral, a percepção de cores, reconhecimento de objetos e faces são aperfeiçoados. Na dorsal, ocorre a percepção de movimento de velocidade e a representação espacial dos objetos (MACHADO, 2014, p.252). Nas áreas terciárias da visão, é procedida a integração de percepções advindas dos demais sentidos (LÚRIA, 1981). Finalmente, estas informações visuais vão para o lobo frontal, o cérebro executivo, onde o entendimento e a razão encontram parte considerável de sua elaboração. 

O complexo de áreas, cada qual com sua função, não exibe estruturas específicas, onde os conhecimentos se arquivam como se fosse uma biblioteca. Talvez, seja mais adequado substituir a ideia de conhecimentos a priori por funções perceptivas e cognitivas da consciência. Esses conhecimentos são elaborados por essas funções mentais, que recebem o material empírico devidamente processado pela percepção. Não existe uma categoria inata da lei da causa e efeito arquivada na região dorsolateral do lobo frontal, mas uma faculdade de conceber que emana de estruturas do sistema nervoso central. 

Não se pode entender o espaço e o tempo como estruturas da percepção humana, tal como afirmava Kant. Sua compreensão está muito mais relacionada com a região pré-frontal, onde ocorre predominantemente a integração temporal das informações sensíveis. Mas é preciso lembrar que as diversas áreas corticais trabalham em concerto e não de forma individuada, não havendo áreas específicas responsáveis por dadas funções de forma exclusiva. É preciso lembrar que o sistema nervoso foi filogeneticamente constituído ao longo da evolução, não tendo sido obra de um projeto adrede elaborado. Citarei, como exemplo, a área de Wernicke que é responsável pela compreensão das palavras e, portanto, pela formação de conceitos. Uma lesão nesta área impede que a pessoa agrupe as palavras para formar um pensamento. Na afasia de Wernicke, produzida por lesões na região do mesmo nome, a pessoa fala fluentemente, mas o discurso não faz sentido, denotando que a área em questão é elaboradora do discurso racional. Embora esteja localizada nos lobo temporal e não no frontal, a área de Wernicke está diretamente relacionada tanto à percepção quanto ao entendimento. 

Malgrado eventuais imprecisões, a concepção de Kant parece ser compatível com a organização anatômica e funcional do sistema nervoso, bem como com a forma como as sensações são cognitivamente elaboradas. Substituindo-se tanto a ideia de espaço e tempo como estruturas a priori da percepção e os juízos sintéticos a priori como estruturas inatas do entendimento por faculdades perceptivas e cognitivas, percebe-se que existe uma atividade mental que elabora as informações captadas pelos órgãos das sensações, fornecendo-lhes sentido e convertendo-os em conceitos, juízos e raciocínios. A cognição, identificando semelhanças e diferenças, logra desenvolver juízos sintéticos que ordenam as informações e distinguem causas e efeitos. E todo este trabalho cognitivo pode ser observado e compreendido a partir da disposição anatômica e funcional do sistema nervoso, fornecendo um verdadeiro mapa desta atividade. O fato do sistema nervoso ser composto por inúmeras áreas integradas que produzem o conhecimento tem relação direta com a existência de componentes inatos, uma vez que são estruturas biológicas do sujeito. 

O reducionismo do psiquismo a reflexos seria mais adequado aos arcos reflexos simples e segmentar dos sistemas nervosos primitivos das criaturas oceânicas do início da evolução das espécies. Mesmo um cérebro reptiliano já apresenta estruturas perceptivas e cognitivas básicas que não podem ser reduzidas ao modelo das sensações produzindo suas impressões sobre a tábula rasa da mente. 

A consciência não é uma folha em branco e o material empírico, embora esteja na base do conhecimento científico, precisa ser processado por estruturas sucessivas que dão sentido às suas informações, constroem conceitos, juízos, raciocínios e a totalidade do acervo cultural da humanidade. Todo ele foi elaborado por estruturas do sistema nervoso central. A depender apenas das sensações, haveria apenas impressões incompreensíveis e sem sentido. E os juízos sintéticos a posteriori permaneceriam formando uma massa de dados factuais e contingentes, incapazes de serem convertidos em conhecimentos. 



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

1. BEAR, Mark F.; CONNORS, Barry W.; PARADISO, Michael A. Neurociências: desvendando o sistema nervoso, 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2008. 

2. HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano. São Paulo: Ed. UNESP, 2004. 

3. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Nova Cultural, 1996. 

4. LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano. São Paulo: Martins Fontes, 2012. 

5. MACHADO, Ângelo; HAERTEL, Lúcia Machado. Neuroanatomia funcional, 3. Ed. São Paulo: Atheneu, 2014.

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