By Naira Hofmeister
Às
vésperas de alcançar a trágica marca de 100 mil mortos por Covid-19 e com um
presidente que ergue caixas de um remédio sem eficácia comprovada diante das
câmeras, pode soar melancólico voltar até março e notar que o Brasil ofereceu,
logo nos primeiros dias da pandemia, a resposta mais ambiciosa para combatê-la
até aquele momento.
Quando
mal havia completado um mês do primeiro caso no país, o Ministério da Saúde se
comprometeu a financiar o maior estudo populacional do planeta para medir o
avanço do vírus em território nacional e guiar ações governamentais. Coordenado
pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), a Epicovid19-BR testou quase 90
mil pessoas em todos os cantos do país, de maio a junho, e mostrou como a
realidade brasileira influenciou o comportamento da doença.
“Em
condições normais, um estudo como esse demoraria pelo menos um ano para ser
planejado e executado”, compara o coordenador da pesquisa Pedro Hallal, reitor
da UFPel.
Mas,
depois de abraçar a empreitada e promover o convênio em tempo recorde para
colocá-la em marcha, o governo federal fez pouco caso da pesquisa no momento em
que ela era mais necessária. No início de julho, após duas trocas no comando do
Ministério da Saúde, o Planalto se afastou da UFPel quando a universidade apresentou
resultados que desagradaram ao governo. Um mês mais tarde, sem que a necessária
renovação do contrato entrasse na pauta das autoridades sanitárias em Brasília,
o grupo de pesquisadores precisou recorrer ao financiamento privado para dar
sequência ao trabalho, agora garantido até setembro. “Depois de tanta falta de
consideração ficou muito claro que não queriam a pesquisa”, lamenta Hallal.
A
batalha dos pesquisadores não foi apenas pelos fundos para realizar seu
trabalho. Além de criar uma metodologia praticamente do dia pra noite, tiveram
que se certificar da eficácia dos testes rápidos e buscar apoio em autoridades
regionais para que seus dados pudessem ter impacto nas políticas públicas
diante da postura do governo Bolsonaro. Apesar das dificuldades, a iniciativa
foi tão bem sucedida que inspirou dezenas de estudos locais Brasil afora.
Um
zap da secretária
Acompanhando
a nova rotina mundial imposta pelo coronavírus, a Epicovid19-BR nasceu em um
ambiente virtual. “Estamos pensando em fazer uma pesquisa de prevalência por
amostragem”, escreveu a secretária de Saúde do Rio Grande do Sul, Arita
Bergmann, no grupo de WhatsApp do comitê científico do Estado. Criado por um
decreto no dia 19 de março, o comitê havia sido formado pouco mais de uma
semana depois de o Rio Grande do Sul notificar seu primeiro caso. Contava com a
participação de reitores de universidades gaúchas e autoridades sanitárias para
melhorar a resposta do governo local à pandemia. Com a circulação já restrita,
determinada por medidas legais, o Comitê levou a conversa para a rede social.
Dois
dias antes, a Organização Mundial da Saúde (OMS) havia lançado um protocolo
sugerindo estudos de prevalência para orientar ações governamentais. “Até o momento,
a vigilância concentra-se em pacientes com doença grave e, por isso, o espectro
total da doença ainda não está claro”, destacava o texto. Era uma preocupação
que reverberava o discurso do diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus,
que, na véspera da publicação do protocolo, disse: “Você não pode combater um
incêndio com os olhos vendados. E não podemos parar com esta pandemia se não
soubermos quem está infectado. Temos uma mensagem simples para todos os países:
teste, teste, teste”.
“Isso
quem vai fazer aqui no Rio Grande do Sul sou eu”, disse para si mesmo o reitor
da UFPel, Pedro Hallal, ao ler a mensagem da secretária Bergmann. Ele
apressou-se em responder ao grupo que desenharia uma metodologia o quanto antes
– coisa que fez em 48 horas.
O
reitor Pedro Hallal desenhou uma metodologia em 48 horas e em um mês tinha duas
pesquisas aprovadas (Foto: Charles Guerra/Divulgação)
O
plano: testar uma amostra significativa da população gaúcha em nove cidades,
escolhidas segundo parâmetros de distribuição da população do IBGE, e estimar
as reais taxas de contaminação e letalidade do coronavírus, além dos principais
sintomas associados à doença. Ele propôs também que a pesquisa tivesse quatro
etapas, voltando a campo a cada 15 dias, de maneira que fosse possível
acompanhar o avanço da Covid-19 pelo Estado.
A
sugestão foi comemorada no grupo. “A maior necessidade naquele momento era
obter dados. Sem isso, não havia como guiar as ações”, resume Lucia Pellanda,
reitora da Universidade Federal das Ciências da Saúde de Porto Alegre (Ufcspa).
O
problema é que faltavam testes de diagnóstico para Covid-19 no mundo todo.
Em
Brasília, o Ministério da Saúde havia recebido uma remessa de 10 milhões de
testes rápidos, do tipo que medem anticorpos ao Sars-COV-2, uma doação da
mineradora Vale S.A. A carga estava sob responsabilidade da Secretaria
Executiva de Atenção Primária, naquela altura, comandada pelo médico gaúcho
Erno Harzheim, a quem Hallal conhecia da vida acadêmica. Harzheim já foi
secretário municipal da Saúde em Porto Alegre e é um dos precursores da
Medicina de Família e Comunidade na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
“Mandei para ele o protocolo da pesquisa e perguntei se cederiam os testes para
aplicarmos”, recorda Hallal.
O
então secretário topou a parceria, com uma condição: “Quero que tu faça a
pesquisa no Brasil inteiro”, disparou Harzheim.
Os
acontecimentos, então, se sucederam de maneira veloz. O projeto de pesquisa
chegou no outro dia, e foi aceito nas 24 horas seguintes. Em uma semana estava
garantido o financiamento de R$ 12 milhões para a execução da pesquisa
nacional, além dos testes rápidos. Em 29 de março, a notícia de que o governo
federal financiaria a maior pesquisa do gênero no mundo já estava na rua. Em
maio, depois de passar pela aprovação do comitê de ética e após licitações
emergenciais para contratar entrevistadores, o estudo nacional de prevalência,
Epicovid19-BR, teve seu pontapé inicial. Mas Brasília já não era a mesma.
Ciência
pé no barro
Quando
os epidemiologistas da UFPel decidiram acompanhar a evolução da Covid-19 no
país, não havia muitas experiências nas quais se inspirar. Até então, a ciência
havia mapeado a evolução do vírus apenas em populações pequenas, como a da
cidade de Vò, na Itália, onde os quase 3 mil moradores foram testados.
Na
Islândia, mais de 5 mil indivíduos foram incluídos em um estudo de prevalência,
mas eles eram voluntários, o que pode distorcer os resultados em razão do viés
de diagnóstico – há mais chances de uma pessoa se apresentar como participante
quando ela tem razões para achar que está contaminada, por ter algum sintoma
gripal ou viajado a regiões onde a pandemia estava em estágio mais avançado.
A
Espanha anunciou um trabalho similar ao brasileiro, mas só no final de abril,
45 dias depois de decretado o lockdown no país – e a coleta de exames era feita
nos postos de saúde com hora marcada, um modelo com grandes chances de não dar
certo no Brasil, onde o temor diante do vírus reduziu a procura na rede pública
de atenção primária.
Era
preciso ir até as pessoas, mesmo que a empreitada exigisse um esforço inédito
de mobilização para dar conta das proporções continentais do país. Mas esse não
era um empecilho para o Centro de Pesquisas Epidemiológicas da UFPel que, nos
últimos 40 anos, se especializou em fazer pesquisas populacionais de porta em
porta.
“Pesquisadores
em geral trabalham em laboratórios. Eu costumo dizer que, aqui em Pelotas, a
cidade inteira virou o nosso laboratório. Nós temos essa tradição. Não sei
quantas pesquisas já fizemos visitando as pessoas de casa em casa”, conta o
epidemiologista Cesar Victora, professor da UFPel, integrante da Epicovid-19BR.
Cesar
Victora fazendo pesquisa em uma residência nos anos 1980 (Foto: Acervo pessoal)
Cesar
Victora e o professor Fernando Barros foram os precursores do método no Brasil,
no início dos anos 1980, quando Pelotas foi pioneira em estudos de coorte no
país, uma modalidade de pesquisa populacional que acompanha seus participantes
com regularidade por um longo período de tempo. A primeira coorte pelotense –
hoje já são quatro, todas ainda em andamento – começou com uma iniciativa de
Barros, que decidiu investigar os 5,9 mil bebês nascidos na cidade em 1982 para
buscar dados para sua tese de doutorado.
A
entrevista inicial com as mães foi feita nas maternidades, mas ao tentar rever
as crianças em seu primeiro ano de vida, Barros encontrou apenas 20% da amostra
– os endereços fornecidos nos cadastros continham erros, e muitos haviam se
mudado de casa. A solução, no ano seguinte, já com Victora na pesquisa, foi
visitar todas as 68 mil residências urbanas de Pelotas em busca dessas
famílias.
“Foi
a grande loucura, que deu certo. Batíamos na porta e perguntávamos: tem alguém
aqui que nasceu em 1982? Foi um trabalho brutal, que quando terminou,
prometemos nunca mais repetir. Só que em 1986, precisamos fazer tudo de novo”,
recorda Barros, que também trabalha na Epicovid19-BR ao lado do parceiro
histórico.
Fernando
Barros: “Foi uma loucura ir de casa em casa, mas deu certo” (Foto: Naira
Hofmeister/Matinal)
As
análises de dados decorrentes das coortes de Pelotas influenciaram políticas
públicas em todo o planeta: Victora e Barros foram os primeiros pesquisadores a
oferecer evidências de que o leite materno é o melhor alimento para os
recém-nascidos. Eles também mostraram como os três primeiros anos de vida são
decisivos para o desenvolvimento das crianças. Graças à dupla, nenês de Pelotas
compuseram uma amostra de um estudo mundial da Organização Mundial de Saúde, ao
lado de crianças dos Estados Unidos, Gana, Índia, Noruega e Omã, que levou a
uma redefinição do padrão de crescimento ideal nos cinco primeiros anos de
idade.
Hoje,
Victora é um dos 15 cientistas brasileiros mais influentes na ciência segundo o
Web of Science Group, que reúne os campeões de citação em uma lista na
internet. Ele é o único brasileiro a receber o prêmio Gairdner de Saúde Global,
um reconhecimento que o coloca entre os cotados para o Nobel.
O
diplomata e a pragmática
A
UFPel não é uma instituição de ponta do ensino ou da ciência brasileira. Ocupa
a modesta 35ª posição no ranking das melhores do Brasil do Ministério da
Educação. Está um tanto isolada, no extremo sul do Rio Grande do Sul, mais
perto da fronteira com o Uruguai do que da capital gaúcha.
Do
ponto de vista econômico, a cidade representa menos de 2% do PIB do Estado –
embora tenha sido um oásis de prosperidade no século 19, quando a elite enriqueceu
explorando mão de obra escrava nas charqueadas. Uma das primeiras centrais
telefônicas do mundo foi inaugurada lá, quase ao mesmo tempo que as de Londres
e Barcelona.
Os
jovens ricos iam estudar no exterior e de lá voltavam com gosto refinado por
roupas, arte e arquitetura, duas heranças que chegaram aos dias de hoje. Uma
pode ser contemplada nos teatros e palacetes que ainda embelezam suas ruas,
outra, através do preconceito que subsiste no costume gaúcho de chamar
pelotenses de “viados”. Um duplo equívoco que atribui ao requinte do passado
uma tendência homossexual e que toma essa última como algo ruim.
A
trajetória singular do Centro de Pesquisas Epidemiológicas colocou a
universidade no mapa-múndi da ciência, mas Pedro Hallal nem sabia ao certo o
que fazia um epidemiologista quando se apresentou à seleção do mestrado na
área, no ano 2000. Ele tinha concluído a graduação em Educação Física e bateu
na porta da “Epidemio” depois que um amigo o avisou que havia vagas. Mas tomou
gosto pela coisa, concluiu mestrado e doutorado, fez estágio de pós-doutorado
na tradicional University College of London, na Inglaterra, e aos 26 anos se
tornou o mais jovem membro afiliado da Academia Brasileira de Ciências.
Também
foi o reitor mais moço a assumir a administração da universidade em 2016. Ele
brinca que depois da eleição, guardou o diploma de epidemiologista na gaveta,
da qual só sairia quando o estudo sobre coronavírus começou a tomar forma. Mas
a verdade é que o mesmo perfil diplomático que o levou a comandar uma
instituição de ensino superior antes de completar 40 anos permitiu que
desempenhasse com naturalidade o papel político que lhe caberia como líder do
projeto sobre a epidemia. Negociou com duas esferas governamentais diferentes –
União e governo do Rio Grande do Sul – e tratou com três ministros da Saúde,
quase sempre botando panos quentes nas desavenças. Só jogou a toalha em julho,
quando já não restava dúvidas sobre o desinteresse do governo Bolsonaro nos
dados da pesquisa.
A
pitada de coragem que faltava para a turma pelotense abraçar de vez a
Epicovid-19BR veio de uma mulher. A ginecologista Mariângela Freitas da
Silveira se uniu ao grupo de epidemiologia da UFPel em 2004 para pesquisar
doenças infectocontagiosas. Experiente na aplicação de testes de sífilis e HIV
em seu trabalho de campo, foi Silveira que tomou a dianteira quando todos seus
colegas hesitaram, preocupados com a responsabilidade de lidar com sangue e um
vírus altamente contagioso de maneira improvisada.
“Eu
trabalho com DST há muito tempo, estou super habituada à pesquisa de campo, nas
ruas, testando as profissionais de sexo em motéis, casas de prostituição. Não
tenho medo de sair com o teste para o campo. Para mim, era algo factível. É a
contribuição que eu pude dar, senão a gente ia perder o trem da história”,
acredita a médica.
Ginecologista,
Silveira estava habituada a aplicar testes de HIV em profissionais do sexo
(Foto: Daniela Xu/Divulgação)
Teste
chinês
Depois
que o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, convocou os países a
recorrerem à testagem em massa, multiplicaram-se pelo planeta opções de marcas
comerciais que prometiam detectar a presença do vírus ou de anticorpos humanos
que reagem à infecção. Pressionadas, as agências reguladoras aprovaram de forma
emergencial esses produtos. No Brasil, a Anvisa recebeu 157 solicitações de
registros apenas entre os dias 18 de março e 16 de abril. Aprovou 39 delas com
base nos documentos fornecidos pelos próprios fabricantes, inclusive os ensaios
clínicos que atestariam sua segurança, qualidade e eficácia. “É importante
esclarecer que, para concessão desses registros, não são realizados ensaios
laboratoriais prévios”, alertou, em abril, uma publicação da agência brasileira
de vigilância em saúde.
A
maioria dos novos testes que chegaram ao mercado eram chamados “rápidos”,
porque oferecem um resultado em 15 minutos. Visualmente, se parecem com aqueles
testes de gravidez comprados em farmácia, só que em vez de fazer xixi na ponta,
a pessoa oferece uma gotinha do sangue, retirada com um “pique” no dedo.
Conforme a promessa expressa no apelido do exame, em pouco tempo se formam uma
ou duas linhas no visor do artefato: no primeiro caso, o teste é negativo, no
segundo, positivo.
Teste
rápido é feito a partir de amostra de sangue coletada com um pique no dedo
(Foto: Daniela Xu/Divulgação)
O
teste rápido não atesta a presença do vírus, como faz o exame PCR, feito a
partir de uma amostra coletada raspando uma espécie de cotonete no fundo do
nariz e da garganta. Ele detecta os anticorpos produzidos pelo corpo humano
como defesa à invasão do organismo pelo coronavírus. Mas isso só acontece
depois de alguns dias da infecção e, por isso, o exame não é recomendado para
diagnóstico da Covid-19 – nos primeiros dias de infecção, ele pode não detectar
o vírus e, quando dá positivo, pode ser tarde demais para isolar o paciente e
evitar a proliferação da doença. Para a pesquisa epidemiológica, entretanto,
vinha a calhar, inclusive porque não exige estrutura laboratorial para ser
feito.
Só
que havia uma desconfiança geral no mundo científico sobre sua baixa qualidade.
A Espanha precisou devolver lotes desse instrumento comprados da China depois
de verificar que eles erravam o diagnóstico em 70% dos casos.
O
Ministério da Saúde ofereceu à equipe da UFPel o Wondfo SARS-CoV-2 Antibody
Test, um teste rápido chinês aprovado pela Anvisa. O fabricante tinha feito uma
prova com 596 participantes e atestava que ele era bastante preciso: errava uma
em cada 250 tentativas quando a pessoa não tinha os anticorpos, dando um
percentual de 0,4% de falsos positivos, mas não detectava 15% dos infectados, o
que ainda assim é um bom desempenho. Além de ser aprovado pela Anvisa, o Wondfo
passou por validação nos laboratórios da Fiocruz e foi considerado “satisfatório”.
“Epidemiologista
tem que ser muito desconfiado, muito cético para buscar sempre o resultado mais
garantido. Quando recebemos os testes, pensamos: ‘deve ser ruim’”, recorda
Cesar Victora. O jeito era submeter o produto a análises próprias.
Coalizão
universitária
Mas
a equipe da UFPel estava sobrecarregada. Enquanto Pedro Hallal tratava detalhes
com o Ministério da Saúde para formalizar o convênio do estudo nacional, o
projeto piloto no Rio Grande do Sul já estava em andamento – aquele acordado com
a secretária Arita Bergmann e apoiado por outros reitores com assento no Comitê
Científico do Estado. Uma coincidência fez com que o Instituto Serrapilheira,
do Rio de Janeiro, entrasse em contato com Victora oferecendo um financiamento
de R$ 1,5 milhão para qualquer pesquisa que estivessem desenvolvendo no momento
sobre o coronavírus.
“Normalmente
lançamos chamadas públicas para encontrar jovens talentos científicos e
financiar suas pesquisas. Mas nessa situação em particular, era uma emergência
e então fomos atrás dos melhores grupos no Brasil que investigam epidemiologia,
infectologia, pneumologia. O da UFPel é de longe o mais destacado, é uma
referência mundial. Sabíamos que era uma aposta garantida”, revela Hugo
Aguilaniu, diretor-presidente do Serrapilheira.
Na
esteira desse patrocínio, vieram ainda a cooperativa de médicos Unimed e o
Instituto Cultural Floresta, uma ONG de ricaços que destina verba para
políticas públicas, nem sempre desinteressadamente. O recurso era suficiente
para dar o pontapé inicial no estudo regional e, por isso, as duas pesquisas
aconteceram de forma simultânea. Era um ingrediente extra no já complicado
xadrez em que estavam os epidemiologistas, pressionados para dar uma resposta
quase imediata a uma doença desconhecida sem abrir mão do rigor que o método
científico exige para ser válido.
Trabalho
nas coortes fez de Victora uma autoridade mundial e trouxe reconhecimento à
UFPel (Foto: Daniela Xu/Divulgação)
Sem
conseguir abraçar todas as frentes, a epidemiologia da UFPel contou com o
trabalho colegas de outras universidades. A Federal de Ciências da Saúde de
Porto Alegre (Ufcspa) se encarregou da Wondfo. A equipe da reitora Lucia
Pellanda instalou um drive thru na Faculdade de Ciências da Saúde de Porto
Alegre e convocou voluntários que tivessem PCRs positivos para ver se o teste
rápido repetiria o resultado com exatidão. Ela também checou material colhido
pela coorte de 1982, ou seja, nunca infectado pelo coronavírus, para garantir
que os testes não dariam um falso positivo num universo totalmente negativado.
O teste foi aprovado.
Ao
mesmo tempo, outras 10 instituições de ensino superior do Rio Grande do Sul
chamaram seus alunos da área da saúde – algumas estenderam o convite também a
egressos de seus cursos de graduação – para se unirem, voluntariamente, às
equipes de coleta da empresa terceirizada, contratada com os recursos doados
pela iniciativa privada para o estudo gaúcho. A entrada em campo dos acadêmicos
trouxe segurança extra no manuseio do material de pesquisa, para que os testes
fossem aplicados sem erros.
A
experiência serviu para formular com maior precisão o treinamento dos
entrevistadores do estudo nacional, selecionados pelo Ibope. Foram dez sessões
preparatórias com as equipes – ao passo que no Rio Grande do Sul, a união das
universidades economizou tempo e recursos, com apenas um reforço dos avisos e
cuidados, sempre na véspera de cada saída.
“No
estudo nacional foram 1,7 mil entrevistadores, e o Ibope precisou contratar
enfermeiros e biomédicos para acompanhar o campo. É muita gente e, por isso,
precisamos ser contundente nas orientações de segurança”, explica Mariângela
Freitas da Silveira.
O
rigoroso treinamento com os trabalhadores do Ibope os capacitou para fazer um
furinho no dedo dos participantes e coletar a amostra de sangue para o teste.
Eles também aprenderam a descontaminar equipamentos e descartar o lixo, foram
instruídos sobre como reportar casos positivos para a vigilância sanitária dos
municípios e treinados para lidar com a imprensa. Mas não estavam preparados
para a hostilidade que marcaria sua estreia nas ruas.
Prisões,
polícia e fake news
No
dia 15 de maio, antes das 10h da manhã, a equipe da Epidemiologia da UFPel
estava a postos em frente aos computadores. Iniciava a primeira etapa do estudo
nacional e os cientistas precisavam checar e validar, remotamente, boa parte
dos 33 mil testes rápidos que começavam a ser aplicados.
Mas
em vez de enviarem os resultados dos exames, os entrevistadores estavam
mandando fotos de cards que circulavam em redes sociais e de cartazes colados
nas ruas que alertavam a população para não abrir as portas a quem se dissesse
pesquisador da Covid-19. Segundo as mensagens enganosas, essas pessoas seriam
assaltantes disfarçados.
Mensagens
com falsos alertas chegaram de todas as partes do Brasil (Foto: Reprodução)
A
desconfiança dos moradores fez com que o trabalho não começasse conforme o
previsto em 40 das 133 cidades brasileiras mapeadas para a coleta de testes e
dados sobre Covid-19 na primeira onda. Em 20 delas, os entrevistadores chegaram
a ser presos e em oito a polícia inclusive destruiu os testes rápidos que
seriam aplicados. Ao final da coleta, 43 municípios não foram incluídos no
relatório porque o volume de testes e questionários era muito reduzido.
“Foi
impressionante. Esses cartazes só podem ter sido distribuídos por robôs, porque
recebemos de todos os lugares, de todas as prefeituras”, lamenta Cesar Victora.
A
falha foi creditada ao Ministério da Saúde que não priorizou de forma adequada
a comunicação com os municípios, abrindo espaço para a desinformação e o
pânico. Embora publicamente a pasta tenha dito que fez tudo certo, internamente
houve um sentimento de pesar porque os servidores admitiam a falta de fôlego
para dar melhor atenção à Epicovid19-BR.
Dentro
dos gabinetes em Brasília, imperava a confusão: não bastando a tensão natural
decorrente da maior crise sanitária do século, havia uma guerra entre os
técnicos da pasta e o presidente da República, Jair Bolsonaro. Desde o início
da pandemia, Bolsonaro seguiu pelo caminho contrário ao apontado pelas
evidências científicas: sua fórmula para o combater o coronavírus era
distribuir cloroquina aos pacientes em qualquer estágio da doença e abrir a
economia, mantendo apenas velhos e doentes isolados, mesmo que essas medidas
não tenham embasamento em estudos sérios. Sua teimosia foi tal que precisou ser
obrigado pela Justiça a usar máscara em público, embora suas atividades sigam
gerando aglomerações de pessoas.
Presidente
Bolsonaro já precisou ser obrigado pela Justiça a usar máscara e sua agenda
provoca aglomerações (Foto: Alan Santos /PR)
Os
conflitos derrubaram dois ministros da saúde em menos de 30 dias, justamente no
período de planejamento da logística e início da primeira coleta de dados do
estudo da UFPel. Quando o protocolo com o Ministério da Saúde foi assinado, o
ministro era Luiz Henrique Mandetta, que cairia uma semana depois. Com ele,
Erno Harzheim também deixou Brasília e a Epicovid-19BR “ficou sem pai nem mãe”
dentro da pasta, segundo o relato de um servidor.
Harzheim
até entregou um relatório ao sucessor de Mandetta, Nelson Teich, no qual o
estudo constava como uma prioridade. Mas o novo ministro não teve tempo de dar
atenção devida ao caso: não durou um mês no cargo, e sua demissão foi anunciada
no dia seguinte ao início dos trabalhos de campo, em meio às prisões e
agressões aos entrevistadores do Ibope.
“Óbvio
que houve descontinuidade e que isso prejudicou a pesquisa. Mas não sou muito
de ficar remoendo, não sei se teve desconforto político, problema com egos. Em
vez de procurar culpados, atribuo as dificuldades ao fato de fazer às pressas
uma pesquisa que demoraria um ano”, desconversou Pedro Hallal em junho,
enquanto ocorria a segunda onda de coleta de dados.
Mais
tarde ele subiria o tom para cobrar da pasta maior adesão ao projeto e, por
fim, acusaria os militares que dominaram o Planalto de irresponsáveis quando
ficou evidente que não haveria continuidade na parceria.
A
sucessão de problemas na realização do estudo fez os pesquisadores nomearem o
grupo de WhatsApp no qual trocam informações de “Sufocovid”.
Desigualdade
2.0
Na
origem das perguntas de pesquisa formuladas por Cesar Victora e Fernando Barros
na virada dos anos 70 para os 80, estava uma curiosidade: qual era o impacto da
desigualdade na saúde dos brasileiros? “Eu queria fazer pesquisa de população,
estudar saúde pública, mas aqui no Brasil a gente fazia mesmo era atendimento
individual, no ambulatório, no hospital”, recorda o pioneiro Fernando Barros.
Quando ele iniciou a coleta de dados nas maternidades, em 1982, por exemplo,
não existiam estudos fidedignos sobre mortalidade infantil.
A
desigualdade foi a principal pauta de trabalho de Barros e Victora, que ao
longo das sucessivas coortes testemunharam melhoras sensíveis nas estatísticas
– em muitos casos, derivadas das próprias pesquisas, depois que a Organização
Mundial da Saúde e a Unicef descobriram os achados dos pesquisadores em Pelotas
e os disseminaram pelo mundo.
Victora,
Barros e uma representante da OMS nos primórdios de suas pesquisas (Foto:
Arquivo pessoal)
No
caso da Covid-19, os pesquisadores se surpreenderam ao perceber como a
desigualdade social teve um papel determinante na disseminação do novo
coronavírus. Os estudos da UFPel verificaram que, ao contrário do que se
acreditava, as regiões Norte e Nordeste, tropicais e pobres, apresentaram
índices muito maiores de contágio do que o Sul, onde o inverno parecia ser um
agravante para um vírus respiratório. Entre as 15 cidades com maior
prevalência, 13 estavam na parte de cima do mapa do país. “Quão errados
estávamos”, desabafou Victora em um debate virtual promovido pela Universidade
de Miami.
Na
medição geral, a camada mais pobre da população apresentou o dobro de
prevalência do que os mais ricos, uma característica que se manteve estável ao
longo das três ondas de coleta de dados, embora o índice de contágio tenha
aumentado para todos. “Acho que o Brasil é o único lugar do mundo onde há uma
estatística feita com base em um estudo populacional que confirma a grande
divisão social que afeta o nosso país e tantos outros da América Latina”,
complementou.
Os
dados também revelaram que os indígenas são o grupo étnico mais vulnerável, e o
fator de risco não pode ser atribuído ao local de moradia – as aldeias, no caso
– porque a Epicovid19-BR foi realizada apenas em áreas urbanas. Os cientistas
ainda não conseguem explicar a diferença, mas há hipóteses. É possível que haja
alguma questão biológica que justifique e o ambiente também pode ter
influência. “No questionário que fazemos com cada participante, incluímos o
número de cômodos da casa e quantas pessoas dividem o espaço. Ainda não foi
possível analisar essas informações, mas logo poderemos ter hipóteses mais claras”,
acredita Hallal.
Boicote
em Brasília
Publicamente,
a equipe da UFPel mantinha o discurso de que depois das falhas na primeira
rodada, a relação com o Ministério da Saúde tinha sido azeitada e tudo corria
bem. A parte técnica sofreu ajustes, e uma uma funcionária de carreira da pasta
foi encarregada de atender o projeto internamente.
Mas
a instabilidade política no Planalto gerava dúvidas, colocando em xeque até a
certeza sobre as etapas já contratadas pela pasta. “Quando o ministro Mandetta
saiu, não conseguimos interlocução. Em certo momento complicou e a segunda onda
até correu risco de não sair”, revela Fernando Barros.
Embora
o secretário nacional do Ministério da Saúde, Elcio Franco, tenha elogiado
publicamente a iniciativa como “uma contribuição do Brasil para a comunidade
científica internacional e para gestores e profissionais de saúde”, a
informação de que os indígenas estão adoecendo mais que o restante da população
nas cidades foi especialmente desconfortável para o governo.
Nos
dias que antecederam a apresentação dos resultados da Epicovid19-BR, em
Brasília, no dia 2 de julho, houve discordância entre os executivos do
Ministério e os pesquisadores. Coube ao secretário Franco evidenciar a
discordância entre a equipe da pasta e os epidemiologistas da UFPel: “Para
indígenas autodeclarados na região urbana, o valor (de infecção) está acima da
média. Precisamos verificar o contexto em que se dá a informação (a
autodeclaração) e quais as influências socioculturais podem interferir na
coleta do dado”, disse. A autodeclaração é o modelo de determinação de cor ou
raça adotado em pesquisas do IBGE desde a década de 1970.
Antes
de passar a palavra ao reitor Pedro Hallal, Franco acrescentou: “Hoje, esse
tema não será abordado devido a essas análises que precisamos fazer”. Uma
semana depois, em 8 de julho, o presidente Bolsonaro vetou medidas emergenciais
para proteger indígenas, entre elas o acesso à água potável e a material de
higiene, itens indispensáveis na prevenção da Covid-19.
O
caso brasileiro não é o único em que governos boicotam o trabalho da ciência.
Nos Estados Unidos, o governo de Donald Trump desautorizou uma pesquisa
intitulada Seattle Flu Study, quando a iniciativa começava a apresentar dados
promissores para o controle do coronavírus.
Novas
fases vão até setembro
Os
resultados da Epicovid19-BR soterraram de vez a teoria de que o SARS-Cov-2 era
um vírus que gostava do frio: em Breves, no Pará, onde as temperaturas nunca
baixam de 20 graus, 25% da população tinha sido contaminada até a metade de
maio, um volume inédito no mundo. No final de junho, já tabulados os resultados
da amostra total de entrevistados, os pesquisadores divulgaram também que a
incidência da Covid-19 era semelhante em todas as faixas de idade. “Sob o ponto
de vista da literatura, esse é talvez o nosso resultado mais importante. E pode
ser extrapolado para o mundo todo, porque não há motivos para imaginar que a
resposta imunológica dos brasileiros seja tão diferente”, avalia Hallal.
Por
outro lado, o estudo colocou em dúvida a teoria de que a maioria dos doentes
são assintomáticos. Quando começaram a pesquisa, os epidemiologistas
trabalhavam com um dado publicado na revista Nature que 60% dos infectados não
apresentava sintomas ou os tinham de forma muito branda. Mas a realidade
revelada pela pesquisa brasileira se mostrou diversa: entre os casos positivos
testados em campo, apenas 10% não sentiam nada – o que não deixa de ser um
alívio para um país que não consegue ampliar a testagem além de casos graves e
internações.
Para
cada diagnóstico de Covid-19 confirmado pelas estatísticas, o estudo estimou
que existem ao redor de seis casos reais não notificados. De cada 100
infectados, um vai a óbito. A prevalência dobrou na população (era 1,9% em maio
e passou para 3,8% em junho), enquanto o percentual de pessoas que estão
mantendo o distanciamento social caiu de 23,1% para 18,9%.
Mas
depois que Franco disse publicamente que “temos que fazer mais” e que o governo
federal iria “analisar quais os próximos passos podem ser dados”, sugerindo uma
aguardada continuidade da pesquisa, o Ministério da Saúde silenciou. Até foram
agendadas reuniões, mas na prática, o esperado anúncio da quarta onda de
coletas, que deveria ter ido às ruas ao final da primeira semana de julho, não
se concretizou.
Em
30 de julho, a pasta mantinha o mesmo discurso dado três semanas antes quando a
imprensa cobrou a renovação. “O Ministério da Saúde dará continuidade a estudos
de inquérito epidemiológico de prevalência de soropositividade na população.
Ainda não está definido se será a continuação do Epicovid19-BR, pela
Universidade Federal de Pelotas (UFPel) ou por outra instituição, ou PNAD
Covid, pelo IBGE. Uma alternativa em estudo é utilizar ambas as estratégias”.
Mas
o reitor Pedro Hallal disse que nunca mais foi procurado e o IBGE não respondeu
aos questionamentos da reportagem. Além disso, Erno Harzheim, o ex-secretário
de Atenção Primária da pasta, assegura que a metodologia da PNAD Covid é
incompatível com a da UFPel: “Essa pesquisa é feita por telefone, não tem
testagem. Fui eu que desenhei, junto com a presidente do IBGE, Suzana Guerra”.
Vestindo
novamente a casaca de vendedor, Hallal voltou sua atenção à iniciativa privada.
Depois de um mês de suspense, a Universidade Federal de Pelotas (UFPel)
confirmou, no dia 05 de agosto, a realização das fases 4, 5 e 6 do estudo. Os
entrevistadores voltam a campo a partir do dia 20 do mês. “O ideal era não ter
esse delay, mas não é um prejuízo grande. O importante é dar continuidade ao
estudo”, comemora o coordenador da Epicovid19-BR.
A
sequência da pesquisa foi garantida graças a um aporte de R$ 11,7 milhões da
iniciativa Todos pela Saúde, um projeto da Fundação Itaú para a Educação e
Cultura que criou um fundo especial para ações de combate à Covid-19. O valor é
quase a totalidade do investido pelo Ministério da Saúde nas primeiras três
fases do estudo, R$ 12 milhões, entretanto, não é o suficiente para a
realização completa das próximas etapas. Isso porque agora a UFPel precisará
comprar quase 100 mil novos testes rápidos, além de equipamentos de proteção
individual para os 1700 entrevistadores do Ibope que vão a campo.
Esses
insumos haviam sido doados pelo governo federal nas primeiras etapas da
pesquisa, mas sem a renovação do convênio com a pasta da Saúde, eles agora
precisarão ser adquiridos diretamente pelo grupo, encarecendo o valor do
levantamento. Por isso também está em negociação um segundo aporte de outra
instituição para complementar o orçamento das três etapas restantes.
Com
a confirmação das novas etapas, o estudo mantém o recorde de participantes em
um levantamento populacional sobre o coronavírus e poderá passar a Espanha
também no número total de testes aplicados. O país ibérico aplicou quase 187
mil testes – porém em cada uma das três etapas as mesmas pessoas eram testadas,
somando 68 mil participantes contra as 89 mil da pesquisa brasileira. Agora,
com a confirmação da sequência do levantamento nacional, o Brasil poderá chegar
próximo da marca espanhola também em testagens, já que está prevista a aplicação
de, pelo menos, 99 mil testes rápidos.
A
rede de apoio extraoficial que a UFPel organizou para minimizar o impacto da
falta de apoio institucional do Ministério da Saúde será ainda mais importante
agora que a pasta deixou o projeto. Ela conta com a Associação Nacional dos
Promotores de Justiça e com a capilarizada presença da Igreja Católica. “A
Pastoral da Criança está em todo o Brasil e tem contato muito próximo com as
comunidades. Apenas em uma das cidades da pesquisa eles não tinham ninguém. Ficaram
arrasados”, observa a ginecologista Mariângela Freitas da Silveira.
O
vínculo com as prefeituras que já havia sido reforçado com a contratação de um
enfermeiro por município, vai ser ainda mais necessário, assim como o suporte
das guarnições policiais, que depois de prenderem os entrevistadores passaram a
colaborar esclarecendo a população sobre a segurança de receber a pesquisa em
casa.
O
impacto nos municípios
Para
contornar as reticências do governo federal os epidemiologistas da UFPel também
se aproximaram de gestores locais, na expectativa de que seus dados possam
fazer a diferença. “Fazemos um relatório para cada um dos municípios que
recebem os entrevistadores: quantos testes foram feitos, quantos foram
positivos, como está o cumprimento do distanciamento social. Com esses dados, é
possível fazer um planejamento adequado à realidade municipal. É tão importante
isso que lugares onde a pesquisa não foi feita estão fazendo por iniciativa
própria. Os gestores públicos se deram conta de que precisam saber o que está
acontecendo”, resume Mariângela Freitas da Silveira.
No
Norte, depois que os epidemiologistas perceberam que os maiores níveis de
contágio estavam em municípios situados às margens do rio Amazonas, que corta a
floresta, a Universidade Federal do Amazonas se debruçou para investigar as
causas. Descobriu que o problema estava no transporte regional, feito em barcos
que acomodam passageiros em redes muito próximas umas das outras, para viagens
que podem durar vários dias. “Esse dado é fabuloso para um gestor público, é de
aplicabilidade imediata”, exclamou Barros quando se deparou com a constatação
pela primeira vez. Embora tenha havido restrições oficiais nas viagens,
embarcações clandestinas seguiram transportando pessoas e levando o coronavírus
ao interior do Brasil.
Governo
Eduardo Leite usa dados no modelo de distanciamento controlado do RS (Foto:
Felipe Dalla Valle/Palácio Piratini)
No
Rio Grande do Sul, os dados da pesquisa compõem os indicadores utilizados no
distanciamento controlado, um modelo que calcula o risco de contágio e de
sobrecarga do sistema de saúde para determinar quanto de circulação e atividade
econômica está permitido para cada região do Estado. Os indicadores são
revisados a cada semana, acompanhando a evolução da doença. O reconhecimento de
sua utilidade ficou explícito quando foi anunciada a continuidade da iniciativa
depois que as quatro etapas foram concluídas: primeiro decidiu-se por mais duas
fases, depois mais duas, totalizando quatro novas etapas. E o poder público,
que de início não havia injetado recursos no estudo, agora o apoia também
financeiramente, através do patrocínio do Banrisul, o banco do Estado.
No
Pará, as informações foram consideradas tão relevantes que foi criado um
consórcio entre governo e prefeituras para fazer levantamentos mais
aprofundados. “Os dados de contaminação são muito relevantes para um gestor, só
estão atrás do número de leito de UTIs”, defende Harzheim, que agora presta
consultorias a gestores públicos sobre o coronavírus através de uma fundação
particular.
O
fato é que a Epicovid19-BR superou obstáculos e inspirou uma dezena de outros
estudos no país – de Bagé a Pernambuco, passando pelo Paraguai, há vários
governos interessados em conhecer mais profundamente o comportamento da pandemia
em seus territórios para tomar providências adequadas. A mais recente está
sendo realizada no Vale do Rio Pardo, no interior do Rio Grande do Sul,
promovida por um consórcio intermunicipal em parceria com a Universidade de
Santa Cruz do Sul. Segue a mesmíssima metodologia por amostragem e com quatro
etapas, separadas por duas semanas entre si.
“O
mais importante para um pesquisador que quiser realizar uma empreitada dessas é
lembrar os motivos pelos quais decidiu ir em busca dos dados. Se ele estiver
convicto da necessidade que a população tem, não vai medir esforços. Para a
gente, era até fácil desistir quando não havia financiamento, quando
aconteceram conflitos com governos, ou quando tivemos entrevistadores presos.
Por outro lado, a gente sabia da importância dos dados para as pessoas. E por
isso, desistir não era uma opção”, conclui Hallal.
Esta
reportagem faz parte de uma série de publicações financiadas pelo programa de
bolsas de Jornalismo de Soluções da Fundación Gabo e da Solutions Journalism
Network, graças ao apoio da Tinker Foundation, instituições que promovem o uso
do jornalismo de soluções na América Latina.
Fonte:
https://www.matinaljornalismo.com.br/parentese/reportagem/um-clarao-nas-trevas/
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