A saúde para a morte


Por: Theodor W. Adorno [1]

 

Se fosse possível uma psicanálise da cultura prototípica dos nossos dias, se a predominância absoluta da economia não escarnecesse de toda a tentativa de explicar a situação a partir da vida anímica das suas vítimas, e se os próprios psicanalistas não tivessem, há muito, jurado fidelidade a esta situação, tal investigação revelaria que a enfermidade actual consiste justamente na normalidade. As prestações libidinosas, exigidas pelo indivíduo, que se comporta no corpo e na alma de forma sadia, são de tal índole que só podem ser levadas a cabo por meio da mais profunda mutilação e de uma interiorização da castração nos extroverts, frente à qual o velho tema da identificação com o pai é o jogo infantil em que foi exercitada. O regular guy e a popular girl não só devem reprimir os seus desejos e conhecimentos, mas também ainda todos os sintomas que na época burguesa se seguiam do recalcamento. Assim como a antiga injustiça não se altera mediante a generosa oferta às massas de luz, ar e higiene, mas é antes dissimulada com a reluzente transparência da fábrica racionalizada, a saúde íntima da época consiste em ter cortado a fuga para a enfermidade, sem que tenha modificado no mínimo a sua etiologia. As mais obscuras saídas foram eliminadas como um lamentável esbanjamento de espaço e relegadas para a casa de banho. A suspeita levantada pela psicanálise confirmou-se antes de ela própria se tornar parte da higiene. Onde maior é a claridade dominam secretamente as matérias fecais. Os versos que rezam - "Persiste a miséria. Tal como antes. / Não podes extirpá-la de raiz, / mas podes torná-la invisível" - têm na economia da alma mais validade do que onde a abundância de bens consegue, de vez em quando, iludir as diferenças materiais em incontível aumento. Nenhum estudo chega hoje ao inferno onde se forjam as deformações que, mais tarde, aparecem como jocosidade, franqueza, sociabilidade, como adaptação conseguida ao inevitável e como sentido prático isento de sinuosidades. Há motivos para admitir que elas têm lugar em fases do desenvolvimento infantil mais têmporas do que na origem das neuroses: se são os resultados de um conflito em que a pulsão foi vencida, o estado, que é tão normal como a sociedade mutilada a que ele se assemelha, provém de uma intervenção, por assim dizer pré-histórica, que anula já as forças antes de se chegar ao conflito, pelo que a ulterior ausência de conflitos reflecte o previamente decidido, o triunfo apriórico da instância colectiva, e não a cura por meio do conhecimento. A ausência de nervosismo e a calma, que já foram o pressuposto da atribuição aos candidatos dos cargos mais bem remunerados, são a imagem do silêncio abafado que os clientes dos chefes de pessoal politicamente, mais tarde, dissimulam. A doença dos sãos só se pode diagnosticar objectivamente na desproporção entre o seu modo de vida racionalizado e a possível determinação racional da sua vida. Mas o vestígio da enfermidade atraiçoa-se a si mesmo: na aparência, é como se a sua pele estivesse estampada com uma marca regularmente modelada, como se neles houvesse um mimetismo com o inorgânico. Pouco falta para se poder considerar os que se consomem na demonstração da sua ágil vitalidade e pujante força como cadáveres preparados, aos quais se ocultou a notícia do seu não de todo conseguido falecimento, por considerações de política demográfica. No fundo da saúde imperante acha-se a morte. Todo o seu movimento se assemelha aos movimentos reflexos de seres a que se imobilizou o coração. Dificilmente as desfavoráveis rugas da fronte, testemunho do esforço tremendo e há muito esquecido, dificilmente um momento de pática tolice no meio da lógica fixa ou um gesto desesperado conservam alguma vez, e de forma perturbadora, o vestígio da vida desvanecida. Pois o sacrifício que a sociedade exige é tão universal que, de facto, só se manifesta na sociedade como um todo, e não no indivíduo. De certo modo, esta assumiu a enfermidade de todos os indivíduos, e nela, na demência congestionada das acções fascistas e dos seus inumeráveis modelos e mediações, a infelicidade subjectiva enterrada no indivíduo integra-se na calamidade objectiva visível. Desconsolador é, porém, pensar que à doença do normal não se contrapõe sem mais a saúde do enfermo, mas esta, na maioria das vezes, representa apenas sob outra forma o esquema do mesmo infortúnio.



[1] Aforismo número 36. Este aforismo é parte do livro mínima moralia escrito pelo Theodor Adorno.

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