Por:
Theodor W. Adorno
Se
fosse possível uma psicanálise da cultura prototípica dos nossos dias, se a
predominância absoluta da economia não escarnecesse de toda a tentativa de
explicar a situação a partir da vida anímica das suas vítimas, e se os próprios
psicanalistas não tivessem, há muito, jurado fidelidade a esta situação, tal
investigação revelaria que a enfermidade actual consiste justamente na
normalidade. As prestações libidinosas, exigidas pelo indivíduo, que se
comporta no corpo e na alma de forma sadia, são de tal índole que só podem ser
levadas a cabo por meio da mais profunda mutilação e de uma interiorização da castração
nos extroverts, frente à qual o velho tema da identificação com o pai é o jogo
infantil em que foi exercitada. O regular guy e a popular girl não só devem
reprimir os seus desejos e conhecimentos, mas também ainda todos os sintomas que
na época burguesa se seguiam do recalcamento. Assim como a antiga injustiça não
se altera mediante a generosa oferta às massas de luz, ar e higiene, mas é
antes dissimulada com a reluzente transparência da fábrica racionalizada, a
saúde íntima da época consiste em ter cortado a fuga para a enfermidade, sem
que tenha modificado no mínimo a sua etiologia. As mais obscuras saídas foram
eliminadas como um lamentável esbanjamento de espaço e relegadas para a casa de
banho. A suspeita levantada pela psicanálise confirmou-se antes de ela própria
se tornar parte da higiene. Onde maior é a claridade dominam secretamente as matérias
fecais. Os versos que rezam - "Persiste a miséria. Tal como antes. / Não
podes extirpá-la de raiz, / mas podes torná-la invisível" - têm na
economia da alma mais validade do que onde a abundância de bens consegue, de
vez em quando, iludir as diferenças materiais em incontível aumento. Nenhum
estudo chega hoje ao inferno onde se forjam as deformações que, mais tarde,
aparecem como jocosidade, franqueza, sociabilidade, como adaptação conseguida
ao inevitável e como sentido prático isento de sinuosidades. Há motivos para
admitir que elas têm lugar em fases do desenvolvimento infantil mais têmporas
do que na origem das neuroses: se são os resultados de um conflito em que a pulsão
foi vencida, o estado, que é tão normal como a sociedade mutilada a que ele se
assemelha, provém de uma intervenção, por assim dizer pré-histórica, que anula
já as forças antes de se chegar ao conflito, pelo que a ulterior ausência de
conflitos reflecte o previamente decidido, o triunfo apriórico da instância
colectiva, e não a cura por meio do conhecimento. A ausência de nervosismo e a
calma, que já foram o pressuposto da atribuição aos candidatos dos cargos mais
bem remunerados, são a imagem do silêncio abafado que os clientes dos chefes de
pessoal politicamente, mais tarde, dissimulam. A doença dos sãos só se pode
diagnosticar objectivamente na desproporção entre o seu modo de vida
racionalizado e a possível determinação racional da sua vida. Mas o vestígio da
enfermidade atraiçoa-se a si mesmo: na aparência, é como se a sua pele
estivesse estampada com uma marca regularmente modelada, como se neles houvesse
um mimetismo com o inorgânico. Pouco falta para se poder considerar os que se
consomem na demonstração da sua ágil vitalidade e pujante força como cadáveres
preparados, aos quais se ocultou a notícia do seu não de todo conseguido
falecimento, por considerações de política demográfica. No fundo da saúde imperante
acha-se a morte. Todo o seu movimento se assemelha aos movimentos reflexos de
seres a que se imobilizou o coração. Dificilmente as desfavoráveis rugas da
fronte, testemunho do esforço tremendo e há muito esquecido, dificilmente um momento
de pática tolice no meio da lógica fixa ou um gesto desesperado conservam
alguma vez, e de forma perturbadora, o vestígio da vida desvanecida. Pois o
sacrifício que a sociedade exige é tão universal que, de facto, só se manifesta
na sociedade como um todo, e não no indivíduo. De certo modo, esta assumiu a enfermidade
de todos os indivíduos, e nela, na demência congestionada das acções fascistas
e dos seus inumeráveis modelos e mediações, a infelicidade subjectiva enterrada
no indivíduo integra-se na calamidade objectiva visível. Desconsolador é,
porém, pensar que à doença do normal não se contrapõe sem mais a saúde do
enfermo, mas esta, na maioria das vezes, representa apenas sob outra forma o
esquema do mesmo infortúnio.
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