Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2020/05/26/zizek-sexo-em-tempos-de-coronavirus/
Por: Slavoj Žižek.
* ENVIADO DIRETAMENTE PELO AUTOR PARA SUA COLUNA NO BLOG DA BOITEMPO. A
TRADUÇÃO É DE ARTUR RENZO.
O Health Service Executive (HSE) da Irlanda emitiu uma série de diretrizes
a respeito da prática de sexo em tempos de coronavírus. As duas
principais recomendações do órgão são as seguintes:
“Vale a pena considerar dar uma pausa nas interações físicas presenciais,
especialmente se você geralmente se encontra com seus parceiros sexuais online
ou ganha a vida fazendo sexo. Considere marcar encontros amorosos por
videoconferência, praticar sexting* ou participar de salas de
bate-papo virtual. Procure desinfetar os teclados dos computadores e as telas
sensíveis ao toque que você compartilha com outras pessoas. […] A masturbação
não disseminará o coronavírus, especialmente se você lavar as mãos (e quaisquer
brinquedos sexuais) com água e sabão por ao menos vinte segundos, antes e
depois.”
Tratam-se de orientações razoáveis de senso comum para tempos de uma
epidemia disseminada por meio de contatos corporais. Mas vale notar que essas
recomendações simplesmente consumam o processo que já vinha ocorrendo com a
progressiva digitalização das nossas vidas: as estatísticas mostram que os
adolescentes de hoje gastam muito menos tempo explorando a sua sexualidade do
que navegando pela internet.
Ainda que eles de fato pratiquem sexo, hoje não é muito mais fácil e mais
instantaneamente gratificante realizá-lo em um espaço virtual (com pornografia
explícita, por exemplo)? É por isso que a nova série televisiva
estadunidense Euphoria (2019) – que, segundo a descrição da
própria HBO, “acompanha um grupo de alunos de ensino médio e suas experiências
com drogas, sexo, traumas de identidade, mídias sociais, amor e amizade” –, com
sua representação da vida dissoluta dos jovens de ensino médio de hoje é quase
o oposto da realidade atual. Ela está fora de sintonia com a juventude de hoje
e, por esse motivo, se mostra estranhamente anacrônica – revelando ser mais um
exercício de nostalgia de meia-idade a respeito de quão depravadas as gerações
mais jovens já foram.
Mas devemos dar um passo além aqui e se perguntar: e se nunca houve nenhum
sexo “real” desprovido de qualquer suplemento virtual ou fantasiado? A
definição usual de masturbação é “fazer você mesmo ao imaginar parceiros”, mas
e se o sexo verdadeiro for sempre – até certo ponto – masturbação com um
parceiro real? O que quero dizer com isso? Em sua coluna no
jornal The Guardian, Eva Wiseman cita um dos episódios narrados em
“The Butterfly Effect”, uma série em podcast a respeito dos impactos da
pornografia de internet:
“No set de um filme pornográfico, um ator perdeu sua ereção no meio de uma
cena – para retomá-la, desviou seu olhar da mulher nua que se encontrava
deitada diante dele, pegou seu celular e deu uma busca no site PornHub.
O que me pareceu vagamente apocalíptico.”2
A colunista então conclui: “Há algo de podre no reino do sexo.” Concordo,
mas acrescentaria a seguinte lição da psicanálise. Há algo constitutivamente podre
no reino do sexo: a sexualidade humana é em si mesma pervertida, exposta a
inversões sadomasoquistas e, especificamente, à mistura de realidade e
fantasia. Mesmo quando estou a sós com meu parceiro ou minha parceira, minha
interação com ele/ela é inextricavelmente interligada às minhas fantasias. Isto
é, toda interação sexual é potencialmente estruturada como uma “masturbação
com um parceiro real” – tudo se passa como se eu me valesse do corpo de meu
parceiro como um adereço para realizar/encenar as minhas fantasias.
Não podemos reduzir essa lacuna entre a realidade corporal de um parceiro e
o universo das fantasias a uma distorção inaugurada pelo patriarcado, pela
dominação social ou pela exploração – a lacuna já se encontra lá desde o
início. Por isso eu até entendo o ator que, para recuperar sua ereção, deu uma
busca no site pornográfico PornHub: ele estava à procura de um
apoio fantasmático para a sua performance. É por esse mesmo motivo que, como
parte da relação sexual, um parceiro pede para o outro continuar falando,
geralmente narrando alguma “sacanagem” – até mesmo quando você segura em suas
mãos a “coisa em si” (o corpo nu do parceiro), essa presença precisa ser
suplementada por uma construção fantasiosa verbal…
Isso funcionou para o ator porque ele evidentemente não se encontrava em
uma relação amorosa pessoal com a atriz – para ele, o corpo de sua companheira
de cena era mais um robô sexual vivo. Se estivesse apaixonado por sua parceira,
o corpo dela teria importado para ele visto que cada gesto de tocá-la perturbaria
o âmago da subjetividade dela. Quando fazemos amor com alguém que
verdadeiramente amamos, tocar o corpo do parceiro é crucial. Devemos, portanto,
virar do avesso o chavão de senso comum segundo o qual a luxúria sexual é
apenas carnal ao passo que o amor seria espiritual: o amor sexual é mais corporal
do que sexo sem amor.
Será, portanto, que a epidemia em curso irá limitar a sexualidade e
promulgar o amor enquanto uma admiração distante do ser amado que permanece
longe do alcance do toque? A pandemia definitivamente vai alavancar os jogos
sexuais sem contato corporal. Com sorte, no entanto, emergirá disso tudo também
uma nova apreciação da intimidade sexual, e aprenderemos mais uma vez a lição
de Andrei Tarkóvski, para quem a terra, sua composição inerte, húmida, não se
opõe à espiritualidade, sendo antes seu próprio meio. Na obra-prima do diretor
russo, O espelho (1975), seu pai Arseny Tarkóvski recita os
versos de um de seus poemas: “Uma alma sem corpo é pecadora, como um corpo
sem roupa.” A masturbação diante de imagens de pornografia explícitas é
pecaminosa, ao passo que o contato corporal constitui um caminho para a
espiritualidade.
* * *
Slavoj Žižek nasceu na cidade de
Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais
teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob
influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora
crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate
School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside
a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do
centro de humanidades da University of London.
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