
Por: Marina Coelho Arnt (Formada em Letras – habilitação em Língua Portuguesa pela Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC.)
Nota: Ensaio apresentado à
professora Eloisa da Rosa Oliveira, como parte integrante da avaliação da
disciplina Literatura 3, Curso de Letras – UNESC.
Colocação do problema
Este ensaio é uma análise de
parte do livro Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca. Comparando dois contos presentes
no livro: “Feliz Ano Novo” e “Passeio Noturno I e II”. Evidenciando aspectos
históricos que podem ter influenciado o autor a descrever posturas de teor
violento e de ações marginalizadas. Em todos os contos do livro Feliz Ano Novo
há a presença de alguma violência, em algum aspecto: desde uma violência
“marginal”, praticada por indivíduos marginalizados, à violência praticada por
alguém de uma classe um pouco superior, oriunda de “estresse” ou, então de
problemas psicológicos. Entretanto, este ensaio tem como foco a violência
“marginal” presente no conto “Feliz Ano Novo”. A ênfase desta análise se dá
sobre relações entre a violência presente na cidade do Rio de Janeiro, na
década de 1970, registradas no conto “Feliz ano novo”, “Passeio Noturno” e brevemente,
a respeito da história de vida do autor Rubem Fonseca.
Palavras-chave: Violência; Rubem
Fonseca; grupos marginais.
O porquê da relação dos contos
com a vida de Fonseca
O livro de Fonseca – Feliz Ano
Novo – retrata uma realidade da cidade
do Rio de Janeiro durante as últimas décadas do século XX. É completamente notório
o teor de indivíduos marginalizados nos contos do livro: um total de quinze
contos, com referência à violência. A trajetória para o contexto histórico observado
nos contos é relativa ao Brasil Colônia. Os vestígios da exploração portuguesa
sobre o Brasil deixaram “marcas” na população e trouxeram problemas contínuos, refletidos
na existência de grupos marginalizados na década de 70, como é o recorte de
Fonseca.
Isto faz referência ao contexto histórico observado pelo autor, principalmente sobre a violência no Rio de Janeiro, na década de 70. As populações que ficaram marginalizadas com a aparição de tecnologias avançadas, de um mercado de trabalho mais competitivo, de uma educação (obrigatória), de um outro esquema social: foram para áreas mais afastadas, construíram cortiços, favelas, periferias; problemas sociais foram criados e a violência urbana é um dos pilares desta sociedade.
Na verdade, a mera opção pelo
termo marginalidade já sugere conotações teóricas, normativas ou ideológicas.
Mas, independentemente das sutilezas semânticas, o referente empírico dos
termos é geralmente o mesmo: a população marginal é aquela constituída pelos
que se encontram em situação de desemprego, subemprego ou pobreza. (CASTEL,
1997, p.140)
O modo de caracterização da população marginalizada
das personagens do conto “Feliz Ano Novo” são meramente reflexões de uma
sociedade que passou – e passa – por problemas sociais que geram miséria,
pobreza, bandidagem, entre outros. Portanto, é possível perceber uma relação
entre a obra e o contexto do Rio nessa época.
O que faz da marginalidade um
fenômeno urbano é o número absoluto de marginais que vivem nas cidades. Embora
não constituam proporção muito alta das populações urbanas, como é
frequentemente o caso nas áreas rurais, os marginais urbanos formam massa
crítica de grande magnitude. (COELHO, 1978, p 140-141)
A relação do tema – indivíduos
marginalizados congruentes à violência – com o autor depreende-se do fato de
Fonseca ter estudado Ciências Jurídicas e Sociais, além de ter cursado Direito
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro: e ter tido uma carreira militar em
um dos distritos policiais do Rio de Janeiro. Percebe-se a importância – social
– do livro, a este ter sido censurado durante o regime militar por conter
material “contra à moral e aos bons costumes”.
A situação de Feliz Ano Novo
“Feliz Ano Novo” é o primeiro
conto do livro de Fonseca, é um conto curto que descreve e narra uma sequência
de violências, na noite da virada do ano, feita por um grupo marginalizado, com
a perspectiva do narrador: um dos indivíduos marginalizados. O foco do conto é
a respeito das ações feitas e praticadas pelos indivíduos, que aparentemente
são amigos e praticam crimes.
A narrativa inicia-se com o
narrador-personagem conversando a respeito do entusiasmo e da correria pré
réveillon das pessoas com uma aquisição financeira um pouco elevada com amigos
em seu apartamento. Esses estão à espera de outro amigo para buscarem armas no
apartamento de uma vizinha, na noite da virada do ano. Fonseca aborda as falas
e os pensamentos das personagens com uma linguagem pesada e agressiva, e com
erotismo. “As madames granfas tão todas de roupa nova, vão entrar o ano novo
dançando com os braços pro alto, já viu como as branquelas dançam? Levantam os
braços pro alto, acho que é para mostrar o sovaco, elas querem mesmo é mostrar
a boceta mas não têm culhão e mostram o sovaco” (FONSECA, 2010, p. 9-10). Após as
personagens pegarem arma e conversarem sobre sexo; o grupo furta um carro e
partem para assaltar uma casa – “de bacana”. “Puxamos um Opala. Seguimos para
os lados de São Conrado. Passamos várias casas que não davam pé, ou tavam muito
perto da rua ou tinha gente demais. Até que achamos o lugar perfeito”,
(FONSECA, 2010, p. 13).
A casa escolhida pelas
personagens era isolada, o grupo entrou pela porta principal, com meias nos
rostos para não serem identificados. Anunciaram o assalto e buscaram todas as
pessoas que estavam na casa, um total de vinte e sete pessoas, fizeram-nas de
reféns. Perguntaram se não havia mais ninguém na casa, uma mulher – que parecia
ser a dona da casa – respondeu dizendo que sua mãe estava no andar de cima, e
que estava doente. Um dos indivíduos do grupo foi, junto com essa moça, buscar
a senhora; por conta da demora, o narrador subiu para esclarecer o motivo de
tanta espera: “Subi. A gordinha estava na cama, as roupas rasgadas, a língua de
fora. Mortinha. Pra que ficou de flozô e não deu logo? O Pereba tava atrasado.
Além de fudida, malpaga. Limpei as joias”, (FONSECA, 2010, p. 15). Logo depois
de ter pegado as joias da moça e da senhora que estava no andar de cima, o
narrador defeca em cima da cama na qual a enferma estava e limpa o orifício
anal com a colcha que estava na cama. Os dois indivíduos descem e separam o que
gostariam de comer dentro de fronhas. Umas das vítimas – um homem, Maurício – manifesta-se
em meio do silêncio com um apelo para não os machucarem; e que não iriam
prestar queixa do ocorrido à polícia. O narrador fica irritadíssimo com o
pronunciado; para aquelas pessoas: a comida, a comodidade, as joias, o dinheiro
eram irrelevantes; e decide matar o refém: “ Seu Maurício, quer fazer o favor
de chegar perto da parede? Ele se encostou na parede. Encostado não, não, uns
dois metros de distância. Mais um pouquinho para cá. Aí. Muito obrigado. Atirei
bem no meio do peito dele, esvaziando os dois canos, aquele tremendo trovão. O
impacto jogou o cara com força contra a parede”, (FONSECA, 2010, p.16). O grupo
de indivíduos executam outro homem em frente às outras pessoas e violentam
outra mulher antes de partir: “Eu não disse?, Zequinha esfregou o ombro
dolorido. Esse canhão é foda. Não vais comer uma bacana destas?, perguntou
Pereba. Não estou a fim. Só como mulher que eu gosto. E você... Inocêncio? Acho
que vou papar aquela moreninha. A garota tentou atrapalhar, mas Zequinha deus
uns murros nos cornos dela, ela sossegou e ficou quieta, de olhos abertos,
olhando para o teto, enquanto era executado no sofá”, (FONSECA, 2010, p.17). Em
seguida, o grupo encheu toalhas de comida e de objetos, o narrador,
ironicamente, agradeceu a colaboração de todos, saíram da casa e voltaram para
o apartamento do narrador, para celebrar o réveillon: esperando que o próximo
ano seja melhor que o que está por finalizar.
A situação de Passeio Noturno – I
e II
A abordagem da violência presente
em “Feliz Ano Novo” é completamente diferente da violência presente em “Passeio
Noturno (I e II)”. Este conto dividido
em duas partes relata uma violência cometida por problemas – pessoais, e –
psicológicos. O conto “Passeio Noturno” é sobre um homem financeiramente sucedido,
com problemas pessoais. Ele parece ter uma crise interna um pouco forte que
poderia se comportar em um ensaio focado somente nisto, entretanto a análise
proposta neste presente ensaio é uma breve relação entre esses dois contos (“Feliz
Ano Novo” e “Passeio Noturno” I e II)
com o modo como Fonseca escreveu e elaborou a respeito de indivíduos
marginalizados e da violência. O conto é apresentado a partir da perspectiva do
narrador-personagem, assim como em “Feliz Ano Novo”; todas as noites, após
chegar em casa, jantar com a sua família, sem muitos afetos, o protagonista sai
de casa para dar um passeio de carro. “Saí, como sempre sem saber para onde ir,
tinha que ser uma rua deserta, nesta cidade que tem mais gente do que moscas.
Na Avenida Brasil, ali não podia ser, muito movimento. Cheguei numa rua
mal-iluminada, cheia de árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher?
Realmente não fazia grande diferença”, (FONSECA, 2010, p. 53).
A partir do trecho acima,
percebe-se que a personagem “precisa” descarregar, talvez o que chamamos de
acumulo de trabalho, em alguma coisa. Esta coisa que para muitas pessoas é um
esporte, ou algum outro tipo de lazer, para a personagem deste conto é
atropelar pessoas com o seu carro “superpotente”, e o que parece ser algo
decorrente e feito sem nenhum tipo de apego, ou culpa. “Apaguei as luzes do
carro e acelerei. Ela só percebeu que ia para cima dela quando ouviu o som da
borracha dos pneus batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem
no meio das duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito,
ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossões, dei uma guinada rápida para
a esquerda, passei como um foguete rente a uma das árvores e deslizei com os
pneus cantando, de volta para o asfalto”, (FONSECA, 2010, p. 53). Percebe-se
que a personagem principal tem noção de que o que ela está fazendo não é
correto, principalmente neste último trecho onde há essa agilidade para voltar
ao asfalto. Em “Passeio Noturno”, assim como em “Feliz Ano Novo”, aparece algum
tipo de indivíduo marginalizado; mas não é propriamente o narrador-personagem,
como no primeiro conto. Em uma das viagens de carro até o trabalho, o
personagem principal para em uma sinaleira e é surpreendido por uma moça que
para a seu lado no sinal vermelho, ela entrega-lhe um papel contendo o nome e o
telefone dela. Ele liga após alguns dias e marca de sair com esta moça, Ângela.
Ao saírem, a moça não se importa com nada além de frequentar um lugar fino para
a refeição noturna. No jantar, a personagem principal toma água mineral e
Ângela toma muitos martínis. O “ponto alto” da conversa dos dois no restaurante
foi a respeito das hipóteses do porquê Ângela havia passado o bilhete para ele
no trânsito: “Agora diga, falando sério, você não pensou nada mesmo, quando eu
te passei o bilhete? Não. Mas se você quer; eu penso agora, eu disse. ” (FONSECA,
2010, p. 57). As hipóteses foram a respeito: I) Ângela interessou-se pelo
protagonista e escreveu rapidamente o seu nome e telefone em um papel dentro do
carro e entregou-lhe. II) Ângela era uma “puta” e estava sempre com papéis
escritos seu nome e seu telefone. O protagonista preferiu a segunda opção,
talvez, porque Ângela havia revelado que era uma atriz e apareceu apenas em um
filme “pornô” – ainda muito nova, com
vinte anos – “lutando” para ter “uma voz
e uma vez” neste meio artístico. “ E qual hipótese que você escolhe? Ângela
disse. A segunda. Que você é uma puta, eu disse. Ângela ficou bebendo o martíni
como se não tivesse ouvido o que eu havia dito. Bebi minha água mineral. Ela
olhou para mim, querendo demonstrar sua superioridade, levantando a sobrancelha
– era má atriz, via-se que estava perturbada(...)”, (FONSECA, 2010, p.57).
As duas personagens não demoraram
muito no restaurante, o protagonista levou Ângela para casa, informou que
precisava deixá-la há algumas quadras de seu apartamento, por conta de ser
casado e o irmão de sua esposa morar no mesmo prédio. A personagem principal
parece ter um momento de pavor ao deixá-la sair do carro e ir para casa, tendo
em vista que Ângela foi a única de suas vítimas a ter visto seu rosto, este
sentimento de pavor e agonia passa logo, já que o protagonista elabora consigo
mesmo a afirmativa que ninguém havia escapado dele. “Apaguei as luzes e
acelerei o carro. Tinha que bater e passar por cima. Não podia correr o risco
de deixa-la viva. Ela sabia muita coisa a meu respeito, era a única pessoa que
havia visto meu rosto, entre todas as outras. E conhecia meu carro também. Mas
qual é o problema? Ninguém havia escapado. Bati em Ângela com o lado esquerdo
do para-lama, jogando o seu corpo um pouco adiante, e passei, primeiro coma
roda da frente – e senti o som surdo da frágil estrutura do corpo se
esmigalhando – e logo atropelei com a
roda traseira, um golpe de misericórdia, pois ela já estava liquidada, apenas
talvez ainda sentisse um distante resto de dor e perplexidade”, (FONSECA, 2010,
p.60). Após este momento horrendo, o protagonista volta para casa “menos
estressado” e avisa a sua esposa que irá dormir, porque no outro dia terá um dia
terrível no trabalho.
Relação e Análise entre os dois
contos – “Feliz Ano Novo” e “Passeio Noturno”
A violência é manifestada de
maneiras diferentes nos dois contos recortados aqui. “Feliz Ano Novo” recorre à
uma violência marginal, praticada por um grupo à margem da sociedade, como
aborda CASTEL (1997) “a população marginal é aquela constituída pelos que se
encontram em situação de desemprego, subemprego ou pobreza”. Este grupo
marginalizado não aparenta ter boas condições de vidas: razoáveis, pelo menos.
Os indivíduos aparentam serem frutos de pobreza e de desemprego, decorrente de
um problema social do Rio, no recorte de Fonseca, e que, aparentemente, ainda é
realidade. A violência manifestada em “Passei
Noturno” – I e II – é referente a um outro sujeito, que pode ser um tipo – que
apresenta um comportamento padronizado, em comum, já conhecido –: homens (ou
mulheres) de “alta classe”, com poder aquisitivo elevado, oriundo de uma carga
de trabalho elevada; que desenvolvem algum tipo de patologia mental por conta
do estresse, e do trabalho por eles exercido. Este sujeito tipo, diferentemente
dos sujeitos – indivíduos, personagens – que aparecem em “Feliz Ano Novo” não
são pessoas marginalizadas; é este indivíduo que faz a ação de violência para
com alguém marginalizado: no caso deste segundo conto, a pessoa marginalizada é
a quem sofre a violência, o que fica livre à interpretação, a atriz “pornô” que
compartilha o telefone e o nome dela com o sujeito.
É interessante a relação com nomes
– ou ausência desses – nos contos analisados: não são revelados os nomes de nenhum
dos personagens-principais, apenas de alguns personagens relatados nos contos.
Fonseca pode ter usado este recurso a fim de causar esse distanciamento (pessoal)
e se focar, em parte, à violência cometida por diferentes “esferas” da
sociedade. Além deste ponto em comum, ambas violências retratadas nos contos
saem impunes; é um ponto instigante, por conta de Fonseca ter conhecimento da
área, por ter estudado Direito, e decidir não ter um “final”, uma punição, ou
algo desta magnitude. A escolha do autor por não retratar a polícia agindo,
pode ter sido para enfatizar a multiplicidade de “violências” que podem ter
ocorrido na cidade do Rio de Janeiro, no recorte do livro – e que possivelmente
ainda ocorrem.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Camila Franco. Matar é
vier: a violência em contos de Rubem Fonseca. Revista Eutomia Ano II – Nº 01
(309-323)
CASTEL, Robert. A dinâmica dos
processos de marginalização: da vulnerabilidade a “desfiliação”. Bahia: Caderno
CRH, v. 10, n. 26 (1997). ISSN 1983-8239. Disponível em: http://dx.doi.org/10.9771/ccrh.v10i26.18664
acesso em 4 de Maio de 2019.
COELHO, Edmundo Campos. A
criminalização da marginalidade e a marginalização da criminalidade. Instituto
Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ), 12(2)139-161, abr./jun.
1978
Feliz ano novo / Rubem Fonseca. –
3.ed. – Rio de Janeiro: Agir, 2010.
Ótimo ensaio!!
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