Por Nadiéjda Krúpskaia.
Exatamente 150 anos atrás, dia 26
de fevereiro de 1869, nascia Nadiéjda Konstant Ínovna Krúpskaia. Pedagoga,
militante revolucionária e uma das pioneiras da luta pela emancipação feminina
na Rússia soviética. Em homenagem a essa figura excepcional, o Blog da Boitempo
recupera uma breve intervenção dela escrita no início do século passado, mas
que possui atualidade redobrada em uma era de “meninas vestem rosa, meninos
vestem azul”. Publicado originalmente em Svobódnoie Vozpitánie/Свободное
воспитание [Educação Livre], n. 10, 1909‑1910, a tradução é de Priscila Marques
e integra antologia A revolução das mulheres: emancipação feminina na Rússia
soviética, organizada por Graziela Schneider.
* * *
No relatório da Comissão para a
Educação Popular de São Petersburgo no ano de 1908, um dos especialistas, ao
emitir um parecer sobre o ensino de bordado, diz:
Acerca dos bordados, devo atestar
com a mais profunda alegria que em quase todas as escolas mistas eles eram
apreciados não apenas por meninas, mas por meninos, e os últimos desempenhavam
essa tarefa com tanto gosto que em algumas escolas seus resultados superavam o
das meninas, por exemplo, na costura e no trançado.
Esse trecho do relatório
supracitado foi inserido na edição de dezembro do ano passado do boletim de
educação, na seção de crônicas; o autor da crônica expressa certa dúvida quanto
à utilidade de se ensinar meninos a costurar.
Gostaria de dizer algumas
palavras sobre esse tema.
Antes de tudo, colocarei a
questão de forma mais geral: deve-se ensinar aos meninos aqueles trabalhos que
até então eram considerados exclusivamente femininos, como costurar, cozinhar,
lavar, cuidar de crianças etc.?
Na sociedade contemporânea, a
vida familiar está ligada – e isso provavelmente continuará assim por muito
tempo – a uma série de pequenos cuidados que se relacionam com a concretização
de afazeres domésticos isolados. A futura reformulação da produção e a
alteração das condições da vida em sociedade introduzirão significativas
mudanças nesse âmbito, mas enquanto a vida familiar estiver ligada a tarefas
como cozinhar o almoço, limpar a casa, remendar o uniforme, educar os filhos
etc., todo esse trabalho recairá integralmente sobre a mulher.
Nas famílias que possuem meios,
esse trabalho cabe a uma empregada contratada: cozinheira, faxineira, babá. A
mulher de posses liberta-se de tais tarefas, encarregando outra mulher que não
tem, ela mesma, chance de se libertar. De uma forma ou de outra, todo o
trabalho doméstico recai exclusivamente sobre a mulher. No meio operário, o
marido às vezes contribui com a esposa nos afazeres. A necessidade o obriga. Ao
retornar do trabalho, nos feriados, nos dias de folga, o trabalhador por vezes
vai até a mercearia, varre o chão e cuida das crianças. É claro, nem sempre e
nem todos fazem isso; além do mais, muitos nem sequer sabem fazê-lo (costurar,
lavar), e a esposa, que às vezes também passa o dia trabalhando fora de casa,
quando volta, põe-se a lavar roupa, a limpar o chão e fica até tarde da noite
costurando, quando o marido há muito está dormindo. Mas se entre os
trabalhadores às vezes ocorre de o marido ajudar a esposa com o trabalho
doméstico, nas assim chamadas famílias da intelligentsia, por mais desprovidas
que sejam, o homem nunca participa desse serviço, deixando que a esposa faça
suas “coisas de mulher” da maneira como ela sabe. Um “intelligent” limpando o
chão ou remendando a roupa branca seria alvo de gozação de todos à sua volta.
Na imprensa burguesa (em especial
do Ocidente), fala-se muito que o trabalho doméstico é um campo no qual a
mulher pode empregar suas forças de maneira mais produtiva. A pessoa só cria
algo verdadeiramente grandioso atuando na esfera que melhor corresponde à sua
individualidade, e os pequenos cuidados domésticos são os mais apropriados à
individualidade da mulher. Ela deve se preocupar em ser uma dona de casa
exemplar, e não se esforçar para deixar a vida familiar nem concorrer com o
homem no campo do trabalho intelectual. Não se trata de desprezar a função de
tirar o pó e remendar meias-calças; são tarefas que merecem todo respeito e de
forma alguma desprezo.
A hipocrisia desse discurso é
evidente, uma vez que os homens que saem por aí anunciando seu grande respeito
pelo trabalho doméstico jamais se rebaixam a efetivamente realizá-lo. Por quê?
Pois, no fundo de sua alma, desprezam essa tarefa, consideram-na coisa de seres
menos evoluídos, possuidores de necessidades mais simplórias.
Todas essas conversas sobre a
mulher ser “naturalmente predestinada” à execução dos afazeres domésticos são
bobagens semelhantes ao discurso que, na época, os donos de escravos faziam
sobre estes serem “naturalmente predestinados” à condição de escravos.
Em essência, não há nada no
trabalho doméstico que faça com que ele seja uma ocupação mais adequada para a
individualidade da mulher do que para a do homem. Certos trabalhos que exigem
grande força física estão acima da capacidade das mulheres, mas por que o homem
não pode realizar afazeres domésticos junto com a esposa? A questão não é que
esse trabalho seja inerente à esfera das mulheres, mas sim que o marido precisa
trabalhar durante a maior parte do tempo fora de casa para garantir o sustento.
Enquanto isso acontecer, haverá algum fundamento para que as tarefas de casa
sejam realizadas exclusivamente pelas forças femininas. Mas, à medida que a
mulher é cada vez mais forçada a também se dedicar a assegurar seu ganha-pão,
os afazeres domésticos tomam um tempo adicional, e não é justo que os homens
não contribuam para a sua realização. Da mesma forma, se a profissão do marido
permite que ele tenha muito tempo livre, não é justo que ele considere indigno
se dedicar ao trabalho doméstico em pé de igualdade com a esposa.
A escola livre luta contra todos
os preconceitos que arruínam a vida das pessoas. O preconceito de que a tarefa
doméstica é digna apenas de seres com necessidades menores abala a relação
entre homens e mulheres, introduzindo nela um princípio de desigualdade. Tal preconceito
não martirizou apenas uma mulher, não gerou alienação e discórdia em apenas uma
família. A escola livre é uma ardente defensora da educação conjunta, uma vez
que considera que o trabalho coletivo e as condições iguais de desenvolvimento
favorecem a compreensão mútua e a aproximação espiritual dos jovens de ambos os
sexos e, assim, servem de garantia para relações saudáveis entre homens e
mulheres. A partir desse ponto de vista, a escola livre, ao ensinar trabalhos
manuais, não deve diferenciar crianças de sexos distintos. É preciso que
meninos e meninas aprendam da mesma forma a fazer todo o necessário no trabalho
doméstico e não se considerem indignos de realizá-lo.
Quem já observou crianças sabe
que na primeira infância os meninos se dispõem com tanto gosto quanto as
meninas a ajudar a mãe a cozinhar, a lavar a louça e a realizar quaisquer
tarefas domésticas. Isso parece tão interessante! Mas, em geral, desde os
primeiros anos começa a haver uma diferenciação no interior da família. As
meninas recebem a incumbência de lavar as xícaras, de arrumar a mesa, enquanto
para os meninos dizem: “O que você está fazendo aqui na cozinha? Por acaso isso
é coisa de homem?”. As meninas são presenteadas com bonecas e louças; os
meninos, com trens e soldadinhos. Na idade escolar, eles já aprenderam em
suficiente medida a desprezar “as meninas” e suas tarefas. É verdade que esse
desprezo ainda é muito superficial e, se a escola seguir outra abordagem, essa
depreciação por “coisas de mulher” rapidamente desaparecerá. Com tais
objetivos, é preciso ensinar aos meninos, juntamente com as meninas, a
costurar, a fazer crochê, a remendar a roupa branca, ou seja, tudo aquilo sem o
qual não se pode viver e cujo desconhecimento torna a pessoa impotente e
dependente de outros. Se essa aprendizagem ocorrer como se deve, há razões para
pensar que os meninos a realizem com prazer, como se pode observar no exemplo
das escolas de Petersburgo (é característico que esse experimento tenha sido
realizado em escolas mistas). Sendo assim, é preciso encarregar alternadamente
as próprias crianças (sem separação do trabalho entre meninos e meninas) da
tarefa de preparar o café da manhã coletivo, de lavar a louça, de arrumar as
salas, de limpá-las etc. O desejo de ser útil, de realizar bem a função que lhe
foi atribuída, o entusiasmo pelo trabalho farão com que o menino logo se
esqueça do seu desdém pelas “coisas de mulher”.
É claro que seria ridículo
esperar grandes consequências de se ensinar “coisas de mulher” aos meninos, mas
trata-se de um daqueles detalhes que compõem o espírito geral da escola e aos
quais é preciso atentar.
***
Nadiéjda Krúpskaia nasceu em São
Petersburgo, em uma família aristocrática, foi pedagoga, crítica literária,
memorialista e revolucionária. Iniciou sua atividade revolucionária nos anos
1890 frequentando círculos de estudantes marxistas e operários e logo entrou
para a União da Luta pela Libertação da Classe Operária. Em 1896, foi presa e,
em 1898, no exílio, casou‑se com Lênin. A partir de 1903, passou a atuar no
Partido Operário Social‑Democrata Russo como secretária da redação do Ískra
[Faísca], jornal do partido, e, em 1905, do Comitê Central. Retornou à Rússia
por um breve período, mas, após a Revolução de 1905, mudou‑se para a França,
onde passou vários anos. Depois da Revolução de Outubro, tornou‑se deputada do
Comissariado para a Educação, mais especificamente da Divisão de Educação para
Adultos. Em 1920, assumiu o Comitê de Educação; em 1924, ingressou no Comitê
Central do Partido Comunista e, em 1927, na Comissão de Controle. Entre 1929 e
1939, trabalhou como Comissária da Educação e, em 1931, entrou para o Soviete
Supremo e recebeu o título de cidadã honorária. Colaborou também para a
fundação do Komsomol e do movimento dos escoteiros. Seus textos estão reunidos
na antologia A revolução das mulheres: emancipação feminina na Rússia soviética
(Boitempo, 2017), organizada por Graziela Schneider.
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