Hesitar é preciso


Por: Danilo Barbosa de Arruda


Diante do desconhecido o medo, a desconfiança e a angústia tendem a despertar o alarme do instinto humano mais animalesco. Porém, como animais outrora selvagens, hoje politizados e civilizados, mesmo que ainda carreguemos nos nossos genes traços instintivos, devemos parar e analisar criticamente a situação. Podemos transpor essa barreira do reino animal, avaliando-o.

Esse mesmo medo pode provocar pânico e trazer ambiguidades e dúvidas numa era já demarcada pelas incertezas. Eis o pandemônio ideal para gerar a apatia, o estranhamento, a sensação de paralisia do bicho homem ante o desconhecido. Nessa toada é primordial repensar práticas, reelaborar costumes, refletir sobre hábitos arraigados.

Hesitar é preciso, simples e radicalmente pelo fato de colocar em suspenso os eventos exigentes. Sendo assim, hesitar é, em si, um ato revolucionário.  Dar um passo atrás possibilita visualizar a situação em sua amplitude com todas as suas nuances.

A pandemia reforçou alguns comportamentos e práticas que já eram naturalizadas na sociedade ocidental. Não obstante, a ruptura provocada pelo COVID19 enseja uma premissa de que é hesitar é preciso. Mais do que nunca, a aceleração do tempo e a contingência material e humana pressupõe uma ressignificação de valores.

A primeira constatação é de que vive-se uma sociedade do cansaço, do esgotamento. Isso acontece porque pensava-se que a humanidade controlava a natureza, dominava a si mesma e aos demais com suas inúmeras interações. Dessa forma o inimigo está em nós mesmos, somos nós mesmos e a nossa forma de organização social, práticas, usos e costumes. Tanto que, doenças psicossomáticas, depressão, ansiedade, TDHA, SB, hiperatividade, pânico e burnout vem consignados com o agir humano contemporâneo.

Numa sociedade que prega o desempenho infinito, a superação constante e normaliza a quebra de rituais necessários de recuperação e compreensão do humano, só pode desbordar para análise crítica dessa potência.

A mesma sociedade que apregoa o “Yes, We Can” (Sim, Nós Podemos) esquece que existem barreiras e limites intransponíveis, fatores maiores de ordem biológica, histórica, econômica e científica que corroboram num respeito pela vida em sua totalidade:

 

O plural coletivo da afirmação Yes, we can expressa precisamente o caráter de positividade da sociedade de desempenho. No lugar de proibição, mandamento ou lei, entram em projeto, iniciativa e motivação. A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados (HAN, 2017, p. 24-25)

 

Nessa mesma linha, a luta cotidiana deixou de ser pelo bem viver para se tornar uma luta pela sobrevivência. Isso implica numa corrida incessante, porém com seus dilemas e contradições, na qual as pessoas deixam de ser e vivenciar devidamente todos os ciclos da vida para apenas fragmentar o sujeito. Com o desaparecimento do descanso, do ócio, surge uma sociedade que é escrava de si mesma, de suas idiossincrasias:

 

O próprio Nietzsche, que substituiu o ser pela vontade, sabe que a vida humana finda numa hiperatividade mortal se dela for expulso todo elemento contemplativo: “Por falta de repouso nossa civilização caminha para uma nova barbárie. Em nenhuma outra época os ativos, isto é, os inquietos, valeram tanto. Assim, pertence às correções necessárias a serem tomadas quanto ao caráter da humanidade fortalecer em grande medida o elemento contemplativo” (HAN, 2017, p. 37).

 

Aqui se materializa o já exposto no texto sobre a autodestruição que caminha o modus vivendi da sociedade. Sociedade esta que não é livre, que atrela seu viver ao “progresso” que se espraia para um esgotamento físico e mental, provocando inúmeras enfermidades que culminam no cataclisma do ser. Dito isto, voltemos pro fragmento que intitula o texto Hesitar é preciso.

É preciso hesitar para ter tempo de reflexão, de ponderação, de desistência ou aguardar o surgimento de outras alternativas viáveis e mais factíveis para tomada de decisão. O ser humano não pode prescindir da capacidade de hesitar. Bartleby ao afirmar categoricamente “I would prefer not to” dá um passo atrás e se distancia do objeto, da situação, não deixando ser pego de surpresa e nem tendo que agir imediatamente sobre questões que lhe são impostas.

Não é uma utopia se precaver, pensar e refletir, ter e se dar tempo a tomar decisões para agir com responsabilidade. Para o bem de si e do coletivo, da própria continuidade da civilização. Talvez seja tempo de se questionar a sobrecarga imposta aos sujeitos. Sujeito hoje que é excessivamente cobrado, que é obrigado a ser empreendedor de si mesmo, eximindo a sociedade de suas condições no tempo e espaço. Há um fracasso dessa aceleração do tempo, do evidente cansaço social, do desmoronamento do neoliberalismo e das implicações que reverberam no âmago do ser.

A exacerbação da prática do não hesitar, impede a reflexão de rituais simples como a morte e o luto, como a ligação entre o sujeito e seu convívio social, das interações sociais e as dinâmicas e limites que sim, eles existem, colocam frente a vida.

Talvez possa ser interessante um tempo kairós metafórico para mostrar que o homem não domina e nem tem controle sobre tudo, que não há um senhorio sobre o mundo, que nem tudo nós podemos, para exatamente evidenciar a lição de finitude, de respeitar os rituais de vida e morte, que são mais que necessários, são urgentes.

Por fim, transpassando esse momento de sonhos pandêmicos e de criação de uma esperança de futuro talvez o passado tenha uma mensagem para o presente. Nas palavras de Sófocles, Antígona se sacrifica e é banida por tentar enterrar e fazer o ritual fúnebre do irmão e do próprio pai. O que automaticamente nos remete aos tempos hodiernos, nos quais não se tem tempo ou não se dá prioridade ao velório, ao luto, ao enterro, e rituais de transição que fazem parte da vida.

Em nome da continuidade e manutenção do status quo se rompe com o mínimo essencial desrespeitando a vulnerabilidade das famílias enlutadas, do próprio morto, dos costumes e práticas simbólicos para a humanidade que se reconhecem como civilizados. Outrossim, trazendo a tradição cristã a lume disse Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem
Lucas 23:34. Ao dizer isso Jesus nos instiga a refletir sobre a importância de fazer só quando se tem segurança e se sabe o que se faz. Ao se fazer por fazer, continuar fazendo algo sem se questionar o porquê, caímos na anacronia do século XXI- agir por impulso, sem ler as estruturas, sem se perguntar a violência, a desigualdade, o próprio conceito e sentido de civilização.

Logo, é imperioso reforçar o absoluto desprezo pela vida e pelos rituais que a envolvem. A aceleração da vida, dos prazos, a métrica, os algoritmos e a própria vida em rede impelem o ser humano a banalizar a própria espécie, a naturalizar a violência, a tornar trivial o que antes era considerado um ato supremo de cuidar, de despedir-se, de realizar os ritos fúnebres e deixar o destino seguir seu curso.

A psicose do momento é considerar “normal” voltar a um estado das coisas no qual parar é inconcebível.

 

Referências

 

Bíblia Sagrada online. Disponível para acesso em: https://www.bibliaonline.com.br/acf/busca?q=n%C3%A3o+sabem+o+que+fazem. Acesso em 24 de Julho de 2020.

 

HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. 2ed. Ampliada. Petrópolis, RJ. Vozes, 2017.

 

 

 


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